31.3.06

Exercício

Passei(-)o Passado

“O tempo é uma dádiva da eternidade” – Paul Valèry

Cachos bojudos de uma pequena árvore denotam quase tudo. Passeio. Passei-o sem vê-lo. Sem notar seu microcosmo:
Cachos em flores e frutos. Esparramados na curvatura da copa.
Flores túrgidas de pólen e polinizadas e frutos assementados. Além de uma variedade rica de estados intermediários. Etapas num continuo processo de metamorfose.
Vida.
Rasgados, abertos, hirsutos languidamente. Costurados, lacrados, pasmosos de natureza.

Meus pés catatônicos pararam e fitaram por necessidade.
Mil e um polinizadores revelam sob a sombra da correria cotidiana: mangavas, moscas varejeiras, percevejos, formigas, borboletas. E as flores e frutos. Agentes transformadores da situação, instintivamente. Dinamizam ações imediatas no organismo árvore. Pululam. Insetos espreitados seguem seu rumo caçoando da tentativa de tornar palavras o sistema vigente. Gozam com seu zumbido da pretensão humana. Zzzziiiiiii...
Nutrem-se de um visco oleoso e sintetizado na máquina árvore. Filtro divinizado no tempo. Glorificado pelas intempéries.

Como deixar de notar o silêncio infinitamente ativo de uma pequena árvore, florida de boas-vindas ao Outono. Cuspindo semente e pólen, um pó lento, uma nuvem que deixa a visão turva de emoção, uma medusa aos pensamentos. Pó lento revelado por poucos feixes de luz que dão contorno a nuvens no céu matutino.
Os pés descalços, num caldo de folhas caídas - não mortas - mergulhados numa travessa de grama verde pontiaguda, ainda suadas da respiração noturna. Como espadas de verdura, sangram o silêncio de uma noite transcorrida.
Insetos frenéticos e calmos buscam... percorrem um estame apenas ou a copa inteira. Pés molhados de um melaço do tempo.

Entro na árvore como quem procura causar a menor perturbação possível numa laguna glacial enfiada entre picos dos Andes ou o menor desmoronamento possível em dobraduras de areia nas dunas dos Lençóis maranhenses.
Sob a copa, como de dentro de uma oca, notam-se os movimentos infinitos, a intimidade da dinâmica de uma copa de árvore, de uma aldeia em extinção. Por frisos de galhos e flores, movimentos rápidos e lentos, frêmitos. Com seus rituais, sua pouca roupa, suas tintas, cocares e adereços, a tribo sui generis agarra sua tradição.

Não se pode resistir à tentação de abraçá-la, enfeitiçar-se de tanta nervura, de tamanha alvura, de algo tão vivo sem lambuzar-se todo e grudar em si um pó lento, uma descrição íntima autentica e espontânea: a minha polinização de emoções, reverberadas em palavras da indiferença do mundo todo.
Sim, estou incrustado de pólen. E esparramo-os aqui, por necessidade. Como o pintor raspa o dedo de tintas na lateral da palheta, ou o padeiro que esfrega as mãos na quina da bancada, ou alquimista que espreme suas mãos de pólvora em panos de algodão, ou o padre que toca os cantos da boca lambuzada de farelos e uva, ou ainda o físico que glorifica suas equações e símbolos enigmáticos na largura do quadro. Esparramo rápido. Para poder agarrar de volta meus instrumentos de lógica cartesiana (mesmo que seja a da física quântica), precisão matemática, erudição invejável e escrotice inalcançável... Um inseto absorto em incompreensão expelida em termos, palavras, poesia...
Talvez, as palavras sejam mesmo isso: incompreensão. Fuga de uma emoção eterna. Não suportamos o eterno. E por isso, foi-nos dado o tempo! Necessidade.
Ajoelho diante do caule, franzino e robusto, abraço a árvore... Rezo.

Felipe Modenese 25-03-2006

21.3.06

Farpas do território solidão

Raspas de Rilke

Solidão
Suportada,
Vida,
Desriscada da filogênese
Traço curto
No cristal da criação
Raspas do halo
Turbilhão
Do encontro dos veios
À margem da escuridão
Limite espiral,
Desconcerto de inquietude
Contínua e silenciosa
Solidão

BIU
16-03-2006
Meu território (1998)

Como um inseto
livre sujo
eu rastejo
procurando na superficíe redenção
sob pressão eu misturo
as palavras honestas
elas não mostram o que eu sinto
só demarcam meu terrritório
sujo livre
das suas sujeiras que não são minhas
mas que carrego nos meus pés
que demarcam meu território
longe de você só há uma saída
que não procuro só achando
nos meus sonhos feitos de sujeira
e liberdade
eu me revelo doce
quando você instiga a violência
que existe
sob meus pés
sujos e fracos
e que não pedem descanso
para serem limpos
sonho com você quando sonho comigo
e estou sozinho
novamente
procurando
por você
nesse espaço
já marcado por
mentiras
suor
e lágrimas
que não são
suficientes
para limpar
meus pés
Du Gil

18.3.06

Diálogo (nada despretensioso) de uma vida

- Se você colaborar - ele disse - poderá pedir tudo o que quiser ao Senhor das Inclemências
...
- Imortalidade? Uma eternidade toda com essa serpente fodendo o meu coração? Uma eternidade cheia de medo, de falta de ar, de arritmia cardíaca? Nada feito.
- Você diz porque não conhece a outra alternativa.
- Que outra alternativa?
- O fim comum dos humanos. A morte. Você entende a morte? Já se imaginou morto alguma vez?
-Já que tocamos no assunto, acho que vou me suicidar assim que sair daqui.
- Não, você não vai. Você vai continuar agarrado a essa vida que você detesta, porque no seu coração, nesse mesmo coração pequeno, companheiro de gruta de uma cobra, você sente que essa vida é a única que existe. Depois vem o nada. Entropia de céluças, rendez-vous de vermes, nada de consciência, nada de memória, nada de nada, finito. Kaput. The end - ele compassava as palavras com pequenos socos no braço da cadeira. - Não lhe parece que uma eternidade cheia de medo, por pior que venha a ser, é preferível a uma eternidae cheia de nada?
- Estou pensando se vale a pena pedir minha parte em dinheiro.
- Como preferir.
pág. 54 "Síndrome de Quimera" Max Mallman

2.3.06

O literário nada do real

Papéis em branco (1997)

Fechem as cortinas
celebrem o fim
não temam
não há mais nada a fazer
nada a dizer
não há mais jornais
não há mais bíblias
não há mais mais
apenas o nada
alimentando-se do vazio
hoje é o dia que sempre foi
sem nunca existir
vamos sentar e apreciar a vista
pois nossos olhos não mais vêem
apenas sentem
nosso corpo em estranha modéstia
curva-se diante da própria sombra
tornando-a real
agora a lei é única
agora a lei não é
as palavras não são mais necessárias
agora sabemos o caminho de casa

Eduardo Gil


o lamento (1989)

O lamento da literarura com seus gorjeios e trinados, percorrendo a escala das emoções. É um vento aventureiro desfazendo tranças e arreliando rendas delicadas. A delicadeza de certas mãos que em sonhos tocam a imaginária cintura do sonhador iludido e no final compõem pontes de absurdo sentido entre imagens soltas e acabadas. Tontas cavalgadas por prdarias absolutamente inconcebíveis - e o real se retira humilhado perante o referido inatingível esplendor. Secam gerânios, begônias e nardos. A ordem é revisada. O caos dos corpos a sós. Certas formas se acentuam, procuram-se para grifar-se e, ao coincidir consigo mesmas, sucumbem ao júbilo de se sentir indescritíveis. Prodígios da metamorfose imperceptível!

em Poros ("Language is a virus from outer space"- Burroughs)
de Rubens Rodrigues Torres Filho