30.8.06

Jornalismo Literário II - Feiticeiros

Artesãos da captura
Felipe Modenese /ago 2006

“Nada é mais seguro da própria recompensa do que a serenidade, pois, no seu caso, recompensa e ação são uma coisa só.”
A. Schopenhauer


Todos os dias, homens reúnem-se num quintal para costurar. Continuam na lida até que o serviço esteja terminado. Além de paciência e habilidade, têm em comum o sobrenome Alexandrino Daniel. São membros de uma família de pescadores do bairro Campeche, em Florianópolis. Há anos encontram-se para reconstruir a rede usada durante os meses da pesca da tainha.
Homem, ambiente e trabalho. Um emaranhado de palavras procura reconstruir excertos desse cenário.



****Chegadas****

Um banco de madeira em frente de um rancho sustenta três senhores sentados.
- Boa tarde! – aproximo-me pelas costas.
Por um breve período, a voz estranha aos ouvidos suspende a atividade. Enquanto retomam, apresento-me e peço licença. Minha presença causa pouco desconforto aos homens. A reação tranqüila do trio indica que o mundo tem pouca novidade a apresentar e, junto da aparência física, mostra a idade avançada do grupo.
Um pedaço de bambu apoiado nas paredes laterais de madeira ripada mantém distendido um trecho de algo que parece um enorme tecido, enquanto os senhores, sentados, fiscalizam o quadriculado de linha. O tecido esconde-se às dobraduras e os homens esticam o trecho da rede com os dois braços, como o faz aquele que está prestes a dar o primeiro passo dentro de uma mata fechada.
Chegam mais dois senhores para ajudar na tarefa. Ambos de cabelos brancos. Um bem mais velho que o outro. Depois de cumprimentos aos olhares, sem titubear, começam a atuar sobre o mesmo objeto.


**** “Táio” ****

Há 15 anos compraram a rede para a pesca da tainha. Há quatro transformoram-na numa rede “feiticeira”. Mas há muito mais estão na pesca
Passados os meses de maio e junho em que os cardumes de tainha aproximam-se da costa e a captura é farta, os donos da rede têm de reparar os estragos do uso contínuo e intenso. Ano após ano.
O rancho de madeira que guarda a rede fica no quintal da casa de seo Adriano. Ao lado, separada por um corredor de plantas, fica a casa do irmão, seo Chico. Os dois últimos a chegar são pai e filho: seo Euzébio, irmão mais velho de Chico e Adriano, e um de seus oito filhos, Daniel.
A rede, como contam, tem cerca de 600 metros de comprimento. São três “panos” superpostos: o do meio tem menor quadriculado, entre os outros dois de maior abertura. Compõem a chamada “feiticeira”.


Algum homem experiente, o “vigia”, fica num barco no mar na época da tainha. Os cardumes chegam, o que, segundo Seo Adriano, não é difícil de se saber porque “a água fica vermelha” e “qualquer um percebe”. O vigia logo sinaliza aos pescadores a espera. Os barcos saem da praia para o alto-mar, e a rede vai sendo solta. A extremidade com chumbo atinge o fundo e larga os panos na vertical. O barco vira e continua paralelo à areia. Voltam à praia num outro ponto, distante uns 200 metros da saída. Está feito o cercado com a rede, uma cortina que separa os peixes capturados dos livres para o oceano.
Cerca de 30 homens em cada extremidade puxam a rede, fazendo o arrastão do pedaço de mar cercado. O feitiço da rede funciona aí, quando peixes em fuga arrastam a rede do meio, menor, contra as maiores externas. O trecho da menor que ultrapassa um buraco da maior forma uma espécie de bolsa que deixa as tainhas aprisionadas. O pano quadriculado maior serve como uma estrutura de auréolas para muitas redes de caçar borboletas que se formam com o pano menor. O arrastão até a praia leva tempo e exige esforço.
As “lesões” nos tecidos da rede vêm dos enroscos durante o arraste e da coleta dos peixes emaranhados nas tais bolsas de rede. O embaraço é tanto que só a faca resolve.
A divisão das zonas de pesca da praia entre os donos das redes é muito bem definida, assim como a repartição dos peixes. Os donos da rede ficam com a metade da coleta. O vigia, barqueiros remadores e os puxadores ficam com partes proporcionais da outra metade. A pesca anual da tainha tem suas regras invioláveis.


**** “Retáio” ****

O banco em que estão sentados “tem mais de uns oitenta anos”, segundo seo Adriano. As tantas cicatrizes e o polimento envelhecido das bordas da tábua parecem desmentir o tom de deboche de seu dizer. Ao lado do banco fica um balde com agulhas de costura de redes de pesca e carretéis de linha de alguns diâmetros.

Seo Euzébio é perito com as agulhas: o carretel gira na areia da entrada do galpão e desenrola a linha que vai sendo atrelada ao instrumento com uma das mãos, enquanto a outra alterna as faces da agulha. Distribui os aparatos carregados de linha para os demais, dois de seus irmãos, dois filhos e um neto. Vai todo dia da semana ao encontro para o remendo da feiticeira. Sabe que é fundamental ao bom andamento do processo.
A vistoria minuciosa, mas nem por isso lenta, dos “panos” não deixa passar “buracos”. As braçadas localizam os defeitos da trama de linhas e persistem o dia todo curando o tecido da rede.
Canivete ou tesoura pendurado no pescoço, faquinha bem amolada apertada na axila ou nos lábios, os homens localizam os problemas e vão cortando e costurando fios com nós feitos com as agulhas até que certo buraco esteja sanado.
Vista e mãos não param de suturar habilidosamente as descontinuidades da rede a não ser para contar ou lembrar uma “estória” engraçada, uma piada ou para café, convocado pelas matronas das casas.
Seo Adriano conta que uma velhinha em depressão queria se matar com um tiro. Para não errar, perguntou a alguém o local certo do coração. A resposta guardada foi: - Fica dois dedos abaixo do peito. Quando Seo Adriano terminou dizendo que a velha foi para o hospital com um tiro no joelho, a gargalhada estourou. Logo voltaram ao trabalho.
Terminado o trecho do pano, os senhores decidem mudar e estiram outro trecho de alguns metros. Como são três panos de 600 metros de comprimento e 15 metros de largura (profundidade), em média, o trabalho requer uma boa dose de paciência, gosto pela coisa, assunto e dedos bem firmes e calejados pelos cortes do nylon. Algo nada difícil na família Alexandrino Daniel.

Adriano Alexandrino Daniel tem 80 anos. Seo Chico tem 82 e Euzébio Alexandrino Daniel tem 90 anos. Os filhos presentes têm cerca de 60 e o neto, em torno de 40.
Os três irmãos trabalham na pesca desde crianças. No início, quando Campeche não passava de uma vila longínqua, era apenas para comer. Depois, adultos, tornou-se uma renda extra. Mantiveram outra profissão, aposentaram-se e nunca deixaram a paixão.
A companheira de longa data de seo Adriano convoca com firmeza para o café da tarde. Seo Chico vai para sua casa. Seo Euzébio nos acompanha para o café com leite com pedaço de polenta. A conversa é pouca. Estão voltados ao trabalho.
De volta ao rancho, pergunto se gostam de vinho. O consenso afirmativo é um alarido. Ofereço para trazer vinho numa outra tarde, comprometo-me. Permanece o desejo de reencontrar aqueles homens no ofício, no rito silencioso da família de pescadores.
Costuram todos os anos as redes de memórias, cultivam a mente e o corpo em atividade delicada e tecem, na ação, motivos para uma vida sábia. São artífices de sua longevidade, retidos nos panos serenos de uma vida humilde.
Ao contrário das tainhas, deixam-se levar pela rede e tratam o inevitável com arte magistral.

****Gosto****

Sandálias de couro marrom sobre as meias bege, calça jeans azul marinha, malha branca sobre camisa azul clara de manga curta sobre camiseta cinza-escuro com um buraco abaixo da gola. Boné branco e azul de alguma peixaria. O bigode branco imbricado no rosto. As bolsas dos olhos caem levemente deixando à mostra a carne rosácea do verso das pálpebras inferiores. Juntos aos olhos claros, compõem o olhar profundo de Seo Euzébio.
Ao notar meu retorno, sua voz é baixa e pausada:
- Uhmm! Já tô sentindo o gostinho do vinho.
Os cumprimentos são orais. As mãos não interrompem o trabalho obstinado.

O trecho do “pano” está esticado por um gancho a um abacateiro e os senhores trabalham de pé. Começam às 8 da manhã, pausam para o almoço e continuam até às 4, 5 da tarde. Todos os dias da semana até que a fabulosa rede feiticeira esteja com seu quadriculado totalmente reconstruído, o que levará perto de dois meses.
Um outro filho de Seo Euzébio está presente dessa vez. É João. Além deste e dos irmãos, o neto pescador, filho de uma filha de Seo Euzébio, continua na lida. Imbatíveis na execução dos retalhos, os irmãos procuram trabalho, consertos para o arrastão bem sucedido do próximo ano. Remendam o presente para receberem as tainhas vindouras. Aos “pontos” pacientes, trabalham para o futuro bem preparado.
Escorre pelos descendentes da árvore genealógica dos pescadores um gosto pelo ofício; um visco de serenidade recobre o trato com as pessoas. A conversa sobre a pesca da tainha com o neto é tranqüila.
Os goles de vinho são tímidos se comparados ao entusiasmo da sugestão. Apreciam a bebida, mas conhecem centenas de casos de alcoólatras e desventurados. Molham a goela, controlam o “trago” e preferem o trabalho sóbrio. Sabem dos perigos das drogas e parecem não padecer de angústias que levam ao consumo desmedido de álcool. Não têm do que fugir...
Quando a assunto é política, os ânimos esquentam e as discussões colocam João e seo Chico em oposição. O manuseio fica atrapalhado.
Comparam os preços do litro de gasolina, reconhecendo-os um bom parâmetro da economia e da cadeia produtiva.
O mundo cabe numa tarde de corte e costura, nos remendos de uma rede feiticeira para a pesca sazonal da tainha no Campeche.
Enquanto seo Euzébio ajuda o neto no retalho de um buraco complicado, abrindo o pedaço destroçado, seo Adriano volta depois de um longo tempo dentro de casa, e retoma o ofício sem soltar uma palavra. Procura os buracos e retifica os quadriculados como se tentasse tirar o atraso, como se estivesse em débito com o pacto familiar silencioso.
Preocupado em abastecer-me de conteúdo, seo Chico conta estórias da região e detalha episódios da história brasileira com uma memória intacta e uma mente sã aos 82 anos.
Entretanto, ele não se deu conta de que o ritual que transcorre naquela tarde e que perdura por dezenas de dias é, por si só, mais do que assunto suficiente. É um tratado de habilidade para enfrentar a vida, uma lição de persistência de membros de uma família com um objetivo comum. Uma obra de arte encenada num quintal, a céu aberto, composta de movimentos lapidados pelas intempéries de décadas de vida em sociedade e de pesca. Um monumento vivo em que ação e recompensa fundem-se e ensinam a serenidade adquirida. Um patrimônio da raça humana.

*****Carona****

Quando deixei seo Euzébio em frente a sua casa, depois de um trajeto de conversas calmas e mágicas, e durante o qual me dei conta da relíquia que estava “transportando”, o senhor de 90 anos disse:
- Cresça e apareça, rapaz!
O que será que significa? Talvez seja uma retaliação pela “invasão” do ritual familiar. Talvez, um enunciado qualquer que lhe veio à mente na correria da despedida? Estávamos numa rua movimentada, e enunciara uma frase de efeito para o jovem inocente? Talvez, uma frase enigmática, carregada de significado a ser desvendado? Talvez tivesse falado ao meu espírito: só quando crescer aos solavancos de uma juventude poderá aparecer de maneira completa e serena no mundo?
Certo é que a figura detalhada de seo Euzébio e a sutura familiar da “feiticeira” cresce, toma conta da mente e aparece, recompõe-se em texto, esse tecido de palavras que ousa capturar algum significado. Muitos devem ter fugido...


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