Passagem
“Como é que posso com este
mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio
do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...” (J. G. Rosa)
Passagem.
Um mar vermelho.
Recomeçar a vida
depois de um derrame é travessia e tanto. Há pouco mais de um ano e meio, em
setembro de 2016, ele começa a enfrentar a sobrevida e o descontrole da
motricidade decorrente de um AVC hemorrágico.
Desde então, e após 15
dias na ótima UTI de AVC da Faculdade de Medicina de Botucatu, reabilita-se à
vida. Depois do vazamento de alguns mililitros de sangue que comprometem definitivamente
parte do tecido neuronal no seu hemisfério cerebral direito. O acidente vascular afasta dele a autonomia de
andar, comer, levantar da cama e beber um copo de água, urinar ou tomar banho sozinho.
Talvez o impedimento maior seja não poder brincar com os netos livremente.
Vive quão vasto pode
ser o mar.
Vermelho. Definitivo.
Vive quão profundo é
o estrago de alguns mililitros de sangue vazados.
Um hematoma cerebral
moderado é abissal para muitos. É instransponível para cerca de 80% das vítimas. É
percurso truncado e relativamente comum. Aqui, além disso, há uma peculiar ironia do
destino: Eduardo Modenese é um neurologista clínico e cirurgião.
Médico.
Por quase 50 anos de
prática médica, desde sua formatura na segunda turma da FMB, dedica-se a cuidar
das doenças neurológicas de outros. Tantos acidentes (inclusive os vasculares),
atendimentos de emergências, incluídos os das madrugadas e fins de semana, tantas
horas em mesas cirúrgicas e consultas, tanta busca por eficientes recursos para
o tratamento, tantos pacientes que ficam ilhados em sua condição ou se vão de
vez, além da intervenção humana. Outros, mais numerosos, viveram ou estão
vivendo sua vida, reintegrados ao tecido social na medida do seu possível.
Aos 72 anos, enfrenta-se!
Seu caso mais desafiador! Não há cirurgias ou medicamentos. Não há retornos...
Nem retorno! Depara-se, sim, com o permanente viver da derrocada da autonomia.
Há o continuo imiscuir-se na desobediência do corpo, frustrando-se na lentidão
teimosa da neuroplasticidade.
Paciente.
Em sua jornada,
depara-se consigo em derrame. Derramado, em diagonal, na madrugada do sofá da
sala, sem conseguir qualquer controle do lado esquerdo do corpo. Uma fenda se
inunda entre vida e sobrevida. E não
pode curar-se milagrosamente, num átimo. É preciso viver a perda de si,
vasculhar e desterrar os recursos para se encontrar. Ilhado no enigma, isola-se,
vive a vertigem absurda de não poder se sanar, a não ser pelos passos curtos e
sôfregos de uma longa passagem. A não ser pela conquista milimétrica perante a
ruina da destreza.
Os movimentos finos da
mão esquerda se afogam. O derrame asfixia a meticulosidade essencial das
cirurgias em campos sutis do sistema nervoso. Agora, a debilidade ensina. O
controle é grosseiro. A mão não obedece a vontade de firmar o garfo para o
corte de uma carne que seja. Não pode, ainda hoje, empunhar à esquerda um copo
e beber. O sutil se reverte em tosco. A intensidade da emergência se dissolve
em paciência, em perseverança na reconquista de habilidades.
A marcha fluida através
da rotina, por tanto tempo frenética para a ação urgente, se esvai. Andar
deixou de ser óbvio para ser uma jornada de tantos passos. Ao longo dos meses
de fisioterapia e outras tantas atividades de reabilitação, engendra-se ao
corpo uma nova dinâmica. Conquista, aos poucos, nova forma de caminhar pelo
corredor da casa. Eduardo vem reaprendendo a equilibrar-se na existência.
Teima. Reconfigura seu caminho, com a ajuda da esposa, família e bons
profissionais, para achar seu novo rumo em cada passo até um novo si.
Atravessando.
Resiliente.
Lavrando confiança em
novo lugar, em meio ao desterro de si.
Enquanto a motricidade
se habilita de nova maneira, a cognição esteve intacta. Pelo bem e pelo mal...
Memória, linguagem e pensamento estão ilesos desde o AVC. A consciência dessa
travessia esteve resguardada. E a riqueza que daí emerge é diferencial. A todos
que se dispõem a enfrentar algo assim, e especialmente a um neurologista.
Aos poucos,
revigora-se em crer que pode ajudar, e começa a retomar atendimentos no
consultório. Esculpe na esperança, entremeada nos veios da paciência, uma barca
para se descobrir. Navega perseverante (e não sem titubeios) pela inundação de
alguns milímetros de sangue vazados e fatais a tecidos do cérebro.
Espera que possa
ajudar alguns pacientes. Talvez possa contribuir não só com o conhecimento
médico acumulado, mas também com a expertise sôfrega e penosa de ser um
paciente, substantivo e adjetivo.
Médico e paciente estranham-se
nessa passagem.
Encontram-se na
catástrofe.
Derramam-se.
Confundem-se em
outro homem.
Digno.
Entranham-se para fazer
terceira margem.
Travessia.