30.3.07

Sábias palavras

O benefício da dúvida
Ferreira Gullar - Ilustrada/Folha de SP - 19-02-2006

Difícil é lidar com donos da verdade. Não há dúvida de que todos nós nos apoiamos em algumas certezas e temos opinião formada sobre determinados assuntos; é inevitável e necessário. Se somos, como creio que somos, seres culturais, vivemos num mundo que construímos a partir de nossas experiências e conhecimentos. Há aqueles que não chegam a formular claramente para si o que conhecem e sabem, mas há outros que, pelo contrário, têm opiniões formadas sobre tudo ou quase tudo. Até aí nada de mais; o problema é quando o cara se convence de que suas opiniões são as únicas verdadeiras e, portanto, incontestáveis. Se ele se defronta com outro imbuído da mesma certeza, arma-se um barraco.

De qualquer maneira, se se trata de um indivíduo qualquer que se julga dono da verdade, a coisa não vai além de algumas discussões acaloradas, que podem até chegar a ofensas pessoais. O problema se agrava quando o dono da verdade tem lábia, carisma e se considera salvador da pátria. Dependendo das circunstâncias, ele pode empolgar milhões de pessoas e se tornar, vamos dizer, um "führer".

As pessoas necessitam de verdades e, se surge alguém dizendo as verdades que elas querem ouvir, adotam-no como líder ou profeta e passam a pensar e agir conforme o que ele diga. Hitler foi um exemplo quase inacreditável de um líder carismático que levou uma nação inteira ao estado de hipnose e seus asseclas à prática de crimes estarrecedores.

A loucura torna-se lógica quando a verdade torna-se indiscutível. Foi o que ocorreu também durante a Inquisição: para salvar a alma do desgraçado, os sacerdotes exigiam que ele admitisse estar possuído pelo diabo; se não admitia, era torturado para confessar e, se confessava, era queimado na fogueira, pois só assim sua alma seria salva. Tudo muito lógico. E os inquisidores, donos da verdade, não duvidavam um só momento de que agiam conforme a vontade de Deus e faziam o bem ao torturar e matar.

Foi também em nome do bem -desta vez não do bem espiritual, mas do bem social- que os fanáticos seguidores de Pol Pot levaram à morte milhões de seus irmãos. Os comunistas do Khmer Vermelho haviam aprendido marxismo em Paris não sei com que professor que lhes ensinara o caminho para salvar o país: transferir a maior parte da população urbana para o campo. Detentores de tal verdade, ocuparam militarmente as cidades e obrigaram os moradores de determinados bairros a deixarem imediatamente suas casas e rumarem para o interior do país. Quem não obedeceu foi executado e os que obedeceram, ao chegarem ao campo, não tinham casa onde morar nem o que comer e, assim, morreram de inanição. Enquanto isso, Pol Pot e seus seguidores vibravam cheios de certeza revolucionária.

É inconcebível o que os homens podem fazer levados por uma convicção e, das convicções humanas, como se sabe, a mais poderosa é a fé em Deus, fale ele pela boca de Cristo, de Buda ou de Muhammad. Porque vivemos num mundo inventado por nós, vejo Deus como a mais extraordinária de nossas invenções. Sei, porém, que, para os que crêem na sua existência, ele foi quem criou a tudo e a todos, estando fora de discussão tanto a sua existência quanto a sua infinita bondade e sapiência.

A convicção na existência de Deus foi a base sobre a qual se construiu a comunidade humana desde seus primórdios, a inspiração dos sentimentos e valores sem os quais a civilização teria sido inviável. Em todas as religiões, Deus significa amor, justiça, fraternidade, igualdade e salvação. Não obstante, pode o amor a Deus, a fé na sua palavra, como já se viu, nos empurrar para a intolerância e para o ódio.

(...)

Mas não cansamos de nos espantar com a reação, às vezes sem limites, a que as pessoas são levadas por suas convicções. E isso me faz achar que um pouco de dúvida não faz mal a ninguém. Aos messias e seus seguidores, prefiro os homens tolerantes, para quem as verdades são provisórias, fruto mais do consenso que de certezas inquestionáveis.

26.3.07

Cari caturas


criação


No princípio foi a paz, tranqüilidade insana

que trazia os cântaros repletos

de orvalho. O primeiro dia

ofereceu os ventos, maresia

e outros derivados da distância.

Depois o estranho pássaro da fome

pode voar entre as cabeças esvaziadas

e no seu grito renasceu a esperança,

fazendo enlouquecer todo desejo.

Agora estamos sós em nosso corpos

separados por lâminas de espanto

e desejamos ter a dor

de encontros novos

para estabelecer nosso remoto sono.




canções no intervalo


1.

Na hora seguinte, o silêncio correu como um fluxo

entre teus braços e meus braços, e a carícia

partiu-se como um cristal.


Na hora seguinte, amor foi chuva na boca,

lenços aproximados para a tosse,

movimentos excessivamente curtos para atingir o mar.


Na hora seguinte, o ar foi morte e abandono

e a febre batia asas nos pulsos das crianças.


2.

E veio um navio de cânticos

e de mãos desguarnecidas

pedindo mel e perdão.


E veio um choro violento

assaltar nossos sentidos

voltados para o vazio.


E a noite foi negra e branca

inventando para nós

as flores da compreensão.



poemas de Rubens Rodrigues Torres Filho

contidos em Investigação do Olhar (1963)

(e na obra reunida Novolume, 1997)




12.3.07

Sofas

http://www.rosesargent.com/images/furniture/redcouchstudy003.jpg

Viver marcado


“Basta ser sincero
E desejar profundo...
Você será capaz de sacudir o mundo
Tente outra vez...”
Raul Seixas


A escultura desequilibra
E encena a torção do agora
Em rápidos lances de outrora

O gatilho mastiga a bala
E o que era alien
Respira um bafo familiar
Sem traços de pretensão

Tudo tão arisco ao sorriso
Sincero, tão ríspido e
Fugaz rumo ao bem-estar...

Bater e rolar
Na espuma do real,
Do viver como continuidade
Marcada no estofado vermelho,
Do viver marcado...

Felipe Modenese
20-02-2007