7.12.05

Momentos

Silêncio (ao) Extra-Terrestre

Aqui os sons preenchem o silêncio
Mesmo quando o som é silêncio
E o silêncio é som
Da alma que investe em si
Diante do remanso mundo

Latidos encavalam piados,
E grunhidos, discursos
Percursos descrevem recursos
Do mundar-se ao fundo
Do farfalho dos ramos dos galhos
Da copa, ressonador da voz do vento

Aqui o ar é um elemento
Que impõe o não-esquecimento
Ao desmantelo do eu profundo
Perante reticências das eminências
Do silêncio chiado do mundo
Diante de si mesmo...


BIU
17/11/2005




Furo n’água


i.m. Haroldo de Campos

Que furo n’água, meu,
é: tudo é um furo n’água.
Suar a camisa embaixo
Do sol – a fim de quê?

A hora dos velhos chega,
Depois a nossa e nada
Muda no mundo.O sol,
Que sobe, desce, sobe

Outra vez, desce e assim
Por diante. Venta ao norte
E ao sul, ao sul e ao norte.
Os rios vão dar no mar:

Bom, e daí? O mar
Não enche, as águas voltam
Ao grid de largada
E a trabalheira é tanta

Que nem te digo. Olhar
Demais irrita os olhos
E ouvir dói nos ouvidos.
Mas dá tudo na mesma.

A gente só refaz
o que outros já fizeram
e tudo aqui debaixo
do sol é a mesma merda.

Quem chama algo de novo,
se olha direito, vê
que vem do tempo do onça.
Ninguém mais sabe como

Foi ontem nem ninguém
depois de amanhã vai
lembrar como é que as coisas
terão sido amanhã.

Nelson Ascher – “Parte Alguma”




As cidades e o céu 2


Em Bersabéia, transmite-se a seguinte crença: que suspensa no céu existe uma outra Bersabéia, onde gravitam as virtudes e os sentimentos mais elevados da cidade, e que, se a Bersabéia terrena tomar a celeste como modelo, elas se tornarão uma única cidade. A imagem que a tradição divulga é de uma cidade ouro maciço, com tarraxas de prata e porta de diamante, uma cidade jóia, repleta de entalhes e engastes, que supremas e laboriosas pesquisas, aplicadas a matéria de supremo valor, podem produzir. Fiéis a essa crença, os habitantes de Bersabéia cultuam tudo o que lhes evoca a cidade celeste: acumulam metais nobres e pedras raras, renunciam aos efêmeros, elaboram formas de composta compostura.
Também crêem esses habitantes, que existe uma outra Bersabéia no subterrâneo, receptáculo de tudo o que lhes ocorre de desprezível e indigno, e eles zelam constantemente para eliminar da Bersabéia emersa qualquer ligação ou semelhança com a gêmea do subsolo. No lugar dos tetos, imagina-se que a cidade ínfera possui latas de lixo invertidas, das quais transbordam cascas de queijo, embalagens gordurosas, água de louça suja, restos de espaguete, velhas vendas. Ou mesmo que a sua substância seja aquela escura, maleável e densa como pez que escorre pelos esgotos prolongando o percurso das vísceras humanas, de buraco negro em buraco negro, até esborrachar-se no mais profundo sedimento subterrâneo, e que justamente a partir dos preguiçosos enroscados lá em baixo elevem-se giro após giro, os edifícios de uma cidade fecal de extremidades tortuosas.
Nas crenças de Bersabéia, existe uma parte de verdadeiro e outra de falso. É verdade que duas projeções de si mesma acompanham a cidade, uma celeste e uma infernal; mas há um equívoco quanto aos seus conteúdos. O inferno incubado no mais profundo subsolo de Bersabéia é uma cidade desenhada pelos mais prestigiosos arquitetos, construída com os materiais mais caros do mercado, que funciona em todos os seus mecanismos e relojoaria e engrenagens, com ornamentos de passamanaria e franjas e falbalá pendurados em todos os tubos e vielas.
Preocupada em acumular os seus quilates de perfeição, Bersabéia crê que seja virtude aquilo que a esta altura é uma melancólica obsessão de preencher os receptáculos vazios de si mesma; não sabe que os seus únicos momentos de abandono generoso são aqueles em que se desprende, deixa cair, se expande. Todavia, no zênite de Bersabéia gravita um corpo celeste que refulge com todo o bem da cidade, reunido em torno do tesouro dos resíduos: um planeta que desfralda cascas de batata, guarda-chuvas quebrados, meias gastas, cintilantes cacos de terracota, botões perdidos, embalagens de chocolates, lajeado de bilhetes de bonde, fragmentos de unhas e de calos, cascas de ovo. Essa é a cidade celeste e em seu céu correm cometas de cauda longa, emitidos para girar no espaço como o único ato livre e feliz de que são capazes os habitantes de Bersabéia, cidade que só quando caga não é avara calculadora interesseira. I

Ítalo Calvino em “As Cidades Invisíveis” (1972)

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