26.4.06
V
Carangola a Espera Feliz
Glória de Viver
A Glória
No caminho da luz, às cegas,
À sombra de avencas molecas
E de conversas mais que sinceras,
Sob prantos de bromélias aéreas,
Películas de mica embrochuradas
Projetam os cantos de pássaros
Em tábulas rasas de aflição
E ouvidos descrentes de visão.
Passo a pássaro,
Poucos tropeços vacilados,
Buracos violados
E paisagens exuberantes,
Excitadas em voz,
Compõem um mapa na mente
A partir de cristais excertos da infância,
Galhetos e gravetos arrancados
De cipós e brinquedos truncados;
Tal qual o teneném
Usa o pouco além
Para criar algo encantado:
Um lar dependurado
Nos fragmentos naturais maturados.
Ali a cria resplandece
E a alma em flor se banha,
Podendo tocar a própria tua;
Talvez guiá-la a um caminho iluminado
Por demais batalhado
Delineado pela essência nua.
Faz do construído um santuário,
Emaranhado claro de sensações,
Abrigo à paz e vida,
Breve, entretanto, às claras.
Tão familiar ao mundo,
Percorre-o de vistas fechadas;
Heroína de si mesmo,
A mulher revigora a força vivente,
Enlaceia a vida como um presente
E galopa a terra enferma
A recolher cíntilos de prazer,
Desejos de caminhar e viver.
Vê o que ninguém pode e
Explode em risada que sacode,
Afugenta o medo ausente
Com rugido de amor por entre os dentes,
Infiltrados pelas vilosidades da alma.
Constrói dos toques, gostos, cheiros e sons
Emaranhados um ninho no infinito suspenso:
Um lugar de viver encanto,
A Glória de viver aqui e agora.
11 e 15 - 01-2006
25.4.06
VI
Espera Feliz a Alto do Caparaó
Mucoviscidose
A Túlio
Os olhos lacrados
Percorremos
Trajetos obstinados
Definhamos
Sem atentar ao tentar
Fechar os olhos
E seguir os próprios passos
E os passos próprios.
Eis que gotas caem
Sob o peso da gravidade
E pingam no cruzamento
De diagonais:
Dispor-se e serenar-se.
Caem como líquido amniótico
Rápido
De um mero gestar
Esmero
Pálpebras cortinam
O perambular
Arrastando consigo
A chuva do mar;
Agora,
Só o caminhar
Simples como o oceano
Extenso a brotar.
A vista espera
Os olhos cerrarem-se
E experimenta
As asas abrirem
Antes de secarem
Aos sopros quietos;
Como uma borboleta,
Tomam consciência
Da nova envergadura
Prestes a voar.
E
Ainda escorre um muco viscoso
Da gestação da alma,
Quando o corpo fecha o olho vagaroso
Ao olhar dos pés a palma;
Bater as pálpebras
A um mundo novo
Voar as pernas
Por um caminho povo
E alçar a mente recém-despida
Ao destino tortuoso
Mas pleno
...
Aahh!!!
Isso, ao menos!
17-01-2006
20.4.06
VII
Alto do Caparaó ao Pico da Bandeira
Dádiva em fragmentos condensados
“A totalidade do ser é impossível para nós. Assim, dão-nos tudo, mas de forma gradual.” - Jorge Luis Borges
Ao nível de nuvens soltas,
Cabelos ao vento ar puro
Serpenteiam livres de apuro
A captar sensações amorfas
Dobraduras sem fim
Entremeadas de rotas-minhocas
Laranjas, bradam por mim
E mostram o mundo sem tocas.
Toques de deus por entre fiapos
Iluminam do caminho da luz o fim
E traçam fugas aos aliados
Por um mundo melhor enfim.
Vapores do desespero
Anunciam o esmero
Por um trato sereno
A um perfil pleno.
Como um tato de glória,
Os olhos percebem o meio
E tocam tanta bandeira
Que descascam um país brasileiro
Fértil
Vigoroso
Viçoso.
Subir mais alto só pra ver
O vento rugir segredos
Nos ouvidos cegos
E despertar a fúria de viver,
Soterrada no dia-a-dia,
Embriagada no formol da rotina.
Encurralada, agora pulsa,
Ganha superfície e volume
Fagocitando beleza crua,
Expandindo o limite, incólume
Ao tão que lhe invade
E inspira a liberdade.
Brilha o país
E o planeta inteiro
Do Pico da Bandeira
Em suspiros de vitória
Por um caminho trilhado
Rumo a um eu herdeiro
De um desejo descabido
De viver tudo primeiro.
Cada passo
Todo o passo
Passo todo
Calculado em descalço,
Ciente do caso do descaso,
Revigorado ao máximo
De eterno retorno
Enquanto dura o passo
Derradeiro,
Mas passo a passo.
Tons de uma terra sui generis
Aquarelam o precioso
Nos olhos febris
Do espírito ocioso.
E abduzem,
Como as lâminas da eternidade
Nos fazem com o tempo,
Expondo fragmentos da totalidade,
Sombras coloridas no gradual
Condensadas no limite do real.
Ímpeto vital,
Presente,
Pluma da passagem do tempo,
Passa tempo
Anda
Caminha
Permanecendo no fugaz,
Ardendo de viver
Agora.
Assim como a luz
Que arde e caminha
Ao belo, infinito e eterno do agora
Em seu caminho, que nunca acaba.
13, 19 e 20 - 01 - 2006
18.4.06
17.4.06
Recre(i)ação
A realidade é a construção de dada comunidade, tentando tornar o mundo inteligível. Por isso a literatura refrata esse real e, ao mesmo tempo, faz refletir sobre a consistência do real, sempre relativo e conjetural. É o mundo mesmo que solicita e suscita o poeta em nós. Um poema, um romance, são formas especiais de conhecimento do mundo humano; modos de transfigurar a experiência, no esforço de lhe dar a densidade de um sentido. Ponto de intersecção entre mímesis e poiésis: o barro e a mão do oleiro; na circulação das palavras, a seleção singularizada no poema – corpo novo que é imagem da permanente recriação do mundo.
Extraído do Ensaio "Mímesis e Poética: entre criar e imitar
de Lourival Holanda
(nº 62 da Revista Continente Multicultural- fev.2006)
12.4.06
Poesia atual - artigo
Palavras criam realidades
A ampliação das formas de representação estética tem como corolário uma outra visão da realidade. Toda mudança de paradigma provoca o entusiasmo e o desconforto, a apologia e a negação furiosa
Por Claudio Daniel
Paul Valéry, em conhecido ensaio publicado em 1939, estabelece uma distinção entre a prosa e a poesia, afirmando que a primeira assemelha-se ao andar, e a segunda ao dançar. Estas imagens remetem ao caráter mais utilitário da prosa, onde importam a clareza e o sentido, enquanto na poesia contam mais o andamento rítmico, a construção de paisagens, a estranheza vocabular e sintática, o trabalho com a metáfora e outros recursos lingüísticos, que atribuem ao texto seu valor artístico. Na prosa, está em primeiro plano a função comunicativa, conforme o conceito de Roman Jakobson: o que vale é a informação, e podemos pensar aqui num manual de medicina, num código jurídico, num tratado de filosofia ou em livros de sociologia ou contabilidade. Já na poesia, onde o artesanato semântico é ele mesmo a informação a ser transmitida, temos a função poética, o sentido construído pela forma. Sem dúvida, essa distinção entre prosa e poesia admite exceções: obras como o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, as Galáxias, de Haroldo de Campos e o Catatau, de Paulo Leminski, são textos em prosa permeados de poeticidade, numa voluntária superação de dicotomias, sinalizando também a dissolução das fronteiras entre os gêneros. Por sua capacidade de fluidez, simbiose e mutação, a poesia relaciona-se com outras formas de escrita, perturbando-as, criando uma instabilidade textual, distante de qualquer idéia de imobilidade ou permanência. Sendo um pouco mais audaciosos, podemos pensar na poesia além da própria literatura, manifestada na canção, no balé, na pintura, no drama cênico, enfim, em todas as criações onde a linguagem está enamorada pela linguagem. Tudo é a arte da poética, de certa forma, quando o dançarino, a dança e o dançar são um único e inquietante movimento. Como afirma Antonio Risério, em seu Oriki Orixá, a poesia não se restringe ao código escrito, inclusive por ser anterior a ele: os primeiros poemas de que temos notícia pertenciam à tradição oral (como os mitos fundadores indígenas, africanos ou escandinavos) e eram transmitidos na forma de canto, com a colaboração da música, coreografia, vestuário, mito e símbolo: arte mágica, onde cada palavra não era apenas a representação de uma coisa e, sim, a própria coisa, na forma de som. Não se tratava de imitar, mas de criar realidades, numa síntese entre estética e teurgia. Disso resulta o caráter sagrado, de invocação, dos mantras indianos e dos orikis nagô-iorubás: ao pronunciarem o nome de seu deus, este era corporificado como vibração sonora (o que hoje chamaríamos de isomorfismo, o conteúdo igual à forma). O caráter mágico ou encantatório da poesia, sem dúvida, estava relacionado a formas de pensamento analógico e ritualístico, mas podemos ver suas irradiações em toda a evolução da escritura poética, que nunca renunciou à vocação taumatúrgica de construir universos “com sua própria fauna e flora”, no dizer do poeta chileno Vicente Huidobro, protagonista do criacionismo. Coube às vanguardas históricas, aliás, a recuperação da visualidade, do gesto e do movimento na poesia, aliando a pesquisa fônica a toda sorte de recursos expressivos.
Quando se censura a vanguarda por seu suposto hermetismo ou obscuridade, os anátemas são aplicados à sua “extravagância” formal, mas também a sua “ausência de conteúdo” ou “alienação” (para recuperarmos uma acusação de heresia habitual nos anos 60 e 70). Os poetas experimentais estariam distantes da “realidade” e do “mundo”, isolados em modernas torres de marfim. Caberia perguntar, aqui, quais são os conceitos de “realidade” e de “mundo” defendidos por esses críticos, e que estão na essência de textos literários de imediata compreensão, mas escasso valor artístico. Para os acadêmicos de formação sociológica, discípulos do modelo desenvolvido por Luckács, a realidade é um fato imediato e objetivo sujeito à investigação científica, enfatizando aspectos econômicos ou sociais, dentro de uma linha histórica evolutiva. Essa concepção, que dominou o cenário europeu nas primeiras décadas do século passado, está eivada de certo determinismo (diríamos até fatalismo) que considera todas as criações intelectuais ou estéticas como subprodutos da cadeia produtiva. A partir dessa visão, de indiscutível miopia, surgiram propostas como a do realismo socialista, que intentou ser o “espelho do real”, refletindo as injustiças do capitalismo e projetando, ao mesmo tempo, a futura redenção socialista (considerada inevitável, dentro de uma perspectiva retilínea e darwiniana da história).
Na literatura brasileira contemporânea, essa expansão do sentido pela construção inusitada ou excêntrica é visível em autores como Horácio Costa, Wilson Bueno e Josely Vianna Baptista, precedidos pelo Haroldo de Campos de Galáxias e dos estudos sobre o barroco. Em seu livro A Arte no Horizonte do Provável, o poeta paulista fez uma interessante distinção entre a abordagem diacrônica da literatura, baseada num fio evolutivo histórico, e a sincrônica, que busca relações de proximidade entre autores de diferentes períodos epocais. Esse é o método que utilizou em seu estudo “Uma Arquitextura do Barroco” (em A Operação do Texto), que aponta afinidades entre autores tão diversos como o cubano Lezama Lima, o grego Lícofron, o brasileiro Sousândrade e o chinês Li Shang Yin, distanciados na geografia e no tempo regular, mas muito próximos em seu ostinato rigore e capacidade imaginativa. Essa aproximação, que a princípio pode parecer arbitrária e impulsiva, é fundadora de uma concepção literária e filosófica que animou os autores mais inventivos da América Latina, a partir dos anos 70, dentro dessa vertente que se convencionou chamar de Neobarroco. Num poema como “O Napoleão de Ingres”, de Roberto Echavarren, por exemplo, temos uma collage de signos de diversos territórios e culturas, apontando a mestiçagem, a impureza, o paradoxal e o ambíguo como elementos constituintes de nossa realidade: “A cor da seda, sua textura / são quase metálicos: um zepelim no céu / azul-da-prússia, um dragão chinês / voando em seu troar de metais”. Essa mescla de elementos díspares remete à própria formação social e cultural latino-americana, que cozinhou no mesmo caldeirão signos e referenciais europeus, asiáticos, indígenas e africanos, numa antropofagia que perdura até os dias de hoje. Além da diversidade, a desigualdade da convivência entre tecnologia e subnutrição, crescimento industrial e miserabilidade, erotismo e religião, entre outras manifestações contraditórias do nosso continente, colaboram com o conceito do Neobarroco e sua visão de um mundo plural, irregular, multifacetado, sublime e trágico.
(texto incompleto publicado na Edição Nº62- Fevereiro de 2006 da revista Continente Multicultural)
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