No saguão da pousada onde estou estes dias, há um peixe penso. Ele não permanece, nem se movimenta em sua posição “ereta”, com seu eixo de simetria alinhado com a vertical. Está torto, inclinado, penso.
O que acontece é que o nível da água é pouco para seu tamanho atual. A lâmina de seu ambiente ficou estreita para conter seu porte na dimensão vertical, de modo que sua nadadeira dorsal sai para o ar quando ele “entra no prumo”. Talvez isso ative seu sistema de proteção, pois parte de si está fora de seu local natural, e resguarde sua integridade inclinando-se para ficar contido no espaço (aquático) que lhe cabe.
É inquietando notar sua adaptação ao que lhe cabe neste momento, modificando seu movimento natural, sua atitude normal. A sensibilidade da nadadeira requer imersão. O peixe, o mínimo de proteção no conteúdo de um volume com 20 cm de altura no saguão de uma pousada em Bertioga.
O aquário é para peixes que não crescem tanto. O lugar não lhe cabe mais, e sua sabedoria evolutiva lhe incita mudança.
Estou nesta pousada por uns dias para trazer meu pai numa das praias com melhores condições de acessibilidade (para pessoas com dificuldades de movimento) no país, segundo alguns rankings. Em setembro de 2016, ele sofreu um AVC hemorrágico, deixando be comprometida sua destreza motora do lado esquerdo do corpo.
O alinhamento corporal se perdeu, desgarrou de uma organização consolidada para a marcha ereta. O equilíbrio na verticalidade autônoma esvaiu-se com o banho de sangue em poucos centímetros cúbicos na região parietal do hemisfério cerebral direito.
Meu pai, um neurocirurgião preparado para muitas catástrofes totais, não corta mais seu bife sozinho nas refeições. Perdeu seu prumo e é (de)pendente para quase tudo em seus deslocamentos no espaço e modificou drasticamente sua relação com o tempo... Enfrenta, penso, com bravura sua (de)pendência.
Aceita o convite para Bertioga, numa pousada na praia de Indaiá, onde é disponível uma cadeira anfíbia para conseguir entrar no mar. Viemos banhar a borda do oceano, até que enfim, com seu corpo torto. Vem sentir na pele o infindável mistério do fluxo da vida, podendo pairar boiando em destemor perante o inalienável da vida exigente.
Para tanto, é preciso aceitar ajuda. Para tamanha ousadia, é necessário se entregar à nova condição de (de)pender.
No começo as entradas no mar são um pouco estressantes. Na medida de algum sucesso, ao longo dos dias, meu pai começa a se soltar mais e apreciar, ganha pitadas de ânimo para se contemplar capaz de recomeços contínuos, momento a momento, na frescura do tempo de Bertioga.
Enquanto isso, na pousada o peixe penso não encolherá. Também não contará com mais água, uma vez que o aquário já está no nível máximo. Ele se inclina à espera da liberdade oceânica de seu rio? No aguardo do gesto humano para o espaço digno e próprio?
Parece que vive o que é e como não deve ser. Paira em sua nova restrição, sendo como pode ser. Entre estar no prumo ou inclinado para manter o dorso submerso, seu ser pende por não caber no mesmo espaço, na mesma condição, no mesmo ser de antes. É importante a expansão, mudar, pois sua natureza assim impõe pela força de uma angulação de seu eixo.
Em crescer, sua (de)pendência aumentará até a diagonal ou até virar um peixe de lado, deitado no fundo do aquário. Está (de)pendente para um novo espaço, para a compreensão de uma ajuda na mudança de lugar onde será o que já é e agora não pode ser.
O dono da pousada, questionado sobre a situação, sintetiza que ele cresceu muito e que ainda pode subir o nível da água alguns milímetros. Logo volta para suas ocupações. Não se alarma: inconsciente? ignorante da chance de amar na condição própria ao peixe penso? resistente a soluções necessárias? apegado? apoiado ali? penso?
Meu pai aceita o convite e a ajuda para ser ao mar, reconhecendo-se maior na pele do oceano, confiando e apoiando-se para viver a amplitude oceânica que ele já é, mas não pode ser. Para viver sua nova condição de forma integral, é preciso contar com apoios, é preciso confiar e se entregar ao que de fato nunca deixou se ser: nossa dependência de tudo, nossa pendência a tudo que existe e nos suporta.
É necessário realizar que somos, cada um, pendentes e interdependentes. Assim podemos ter a chance de ser algo bem maior do que a ilusão que temos vivido, algo imensurável, que só cabe dentro das bordas do amor.
Enquanto isso, eu um peixe penso, logo sou.