27.12.05

Suspensões Dependuradas

poema mecanóptico-relativístico
A FORÇA DA POESIA É SUA RESULTANTE NULA
ESSE EQUILÍBRIO TOSCO
SUA LUCIDEZ FOSCA
E A SUFOCADA AGONIA DE FAZER-SE SEM SENTIDO,
ALMEJANDO O DESTERRO DO DESTINO INSOSSO,
COMO A VIDA DEPENDURADA NO RELATIVO
COM TODA SUAS NÃO-RAZÕES...

BIU
22-12-2005



Teso em suspensões ilusórias, do
caos temperado no limiar do medo
mãos dadas e distantes
de zero à cem por hora, dentro de que hora?

onde está pergunta meu coração duro
mas onde está o que responde minha alma...
essa fatalidade de viver para morrer?
esse sonho de não ter o que?
para que tudo isso
grampeador,
medidas,
grifos
traços
rolhas
percevejo
seusujeira
surrealismo infiel
nada é suficiente,
nada é estável
como poderia ser...
telefone
livros
maçanetas e chaves
ovos
leite
deus
barro
hummmmmmmmmmmmmm,

O telefone toca, o passáro toca
o corpo na grama toca
cêu azul, nuvem branca
limão, maçã, dedos
fins que não justificam os meios
tolice e seriedade, compromisso e atraso
câncer e hematomas
cubista mundo.

Imbecil mundo....

Zé Ortega

20.12.05

Consultório

Ampulheta
Especialidade 1: Oftalmologia
Exame 1: Olho no Olho
Diagnóstico 1: Cegueira por condensação vítrea
Terapia 1: Dar vida ao ver, Viver
Especialidade 2: Odontologia
Exame 2: Bate-papo
Diagnóstico 2:
Hipertração da ATM oclusante
Terapia 2: Mastigar e nutrir-se de Poesia
Biu
20/12/2005

19.12.05

Tempo de compras...

Crônica de uma vitrine

Num futuro não muito distante, seremos todos manequins: magérrimos, traços perfeitos, pele, cabelo e olhos inalteráveis.
Presos a uma porosidade áurea, perfeitos, imóveis; com o olhar ao infinito; indiferente ao mundo e, inclusive os ouvidos, entupidos de cera.
E então seremos eternos, eternamente exibidos, olhados, admirados e expostos numa vitrine das lojas de grife (no futuro, todas as lojas o serão), invejados por outros igualmente perfeitos, eternos e encantados, hipnotizadas pelo horizonte indefinido - e, por serem eternos, não invejam nada.
Para sempre sem dores, inertes ao mundo, ao tempo, às opiniões e às emoções, sem dores. Mortos, pois não há vida sem morte e ambas, sem dor. Mas eternos, finalmente eternos...

16.12.05

"O fim e o principio" - I

A Eduardo Coutinho

I

O sol sutura a pele
Do rosto içado ao chão de tudo,
Metido no escuro da face
Marcada do ferro solar arguto
Como cu(o)mprido sem justo ditado:
Mais do que a enxada,
É o mesmo sol hirto
Que castiga do mundo a terra
Devastada
Evacuada
Trucidada
Esturricada

BIU
05/12/2005

Pô, meu!

Poemel

“Eu sou convencido de que o homem inventa a si mesmo.” (Ferreira Gullar em palestra no Espaço Cultural CPFL)

“Não estou vazio,
Não estou sozinho,
Pois anda comigo,
Algo indescritível”
(Carlos D. Andrade em “Carrego Comigo” - Rosa do Povo)

Não li os filósofos,
Releio-os, filtrados.

Nos interstícios destras letras,
Embalsamados nos traços,
Ativados nos termos,
Roxos pelo repuxo
De cordas tensas,
Rotas e eriçadas,
Atadas a tanto custo
Nas fendas e arestas das palavras,
Mantidas em pé em folhas claras.

Cada qual pesa nada
Se retirada do estrume
Onde está (a)fundada,
Mas revela sem antes densidade
Caso tomada fruto
De toda uma humanidade,
Suspensa no ar caduco
Filtrado na árvore dependurada
No cálice da flor-palavra.

Vultos de respeito
Pela filogenia calada,
À sombra das sépalas,
Acometem e deixam suspeito
Cada termo de esconder a ossada
Do mistério às claras.

Ó indesejáveis letras desejadas,
Levadas a termo,
Revelam o sumidouro dos ofícios
E o oficio dos sumidouros,
O viver:
Beijar a flor enquanto primavera,
Extrair um mel
Doce e amargo
Opaco e translúcido
Viscoso, imiscível
Mas presente como a seiva do real

BIU
06 e 14/12/2005

7.12.05

Momentos

Silêncio (ao) Extra-Terrestre

Aqui os sons preenchem o silêncio
Mesmo quando o som é silêncio
E o silêncio é som
Da alma que investe em si
Diante do remanso mundo

Latidos encavalam piados,
E grunhidos, discursos
Percursos descrevem recursos
Do mundar-se ao fundo
Do farfalho dos ramos dos galhos
Da copa, ressonador da voz do vento

Aqui o ar é um elemento
Que impõe o não-esquecimento
Ao desmantelo do eu profundo
Perante reticências das eminências
Do silêncio chiado do mundo
Diante de si mesmo...


BIU
17/11/2005




Furo n’água


i.m. Haroldo de Campos

Que furo n’água, meu,
é: tudo é um furo n’água.
Suar a camisa embaixo
Do sol – a fim de quê?

A hora dos velhos chega,
Depois a nossa e nada
Muda no mundo.O sol,
Que sobe, desce, sobe

Outra vez, desce e assim
Por diante. Venta ao norte
E ao sul, ao sul e ao norte.
Os rios vão dar no mar:

Bom, e daí? O mar
Não enche, as águas voltam
Ao grid de largada
E a trabalheira é tanta

Que nem te digo. Olhar
Demais irrita os olhos
E ouvir dói nos ouvidos.
Mas dá tudo na mesma.

A gente só refaz
o que outros já fizeram
e tudo aqui debaixo
do sol é a mesma merda.

Quem chama algo de novo,
se olha direito, vê
que vem do tempo do onça.
Ninguém mais sabe como

Foi ontem nem ninguém
depois de amanhã vai
lembrar como é que as coisas
terão sido amanhã.

Nelson Ascher – “Parte Alguma”




As cidades e o céu 2


Em Bersabéia, transmite-se a seguinte crença: que suspensa no céu existe uma outra Bersabéia, onde gravitam as virtudes e os sentimentos mais elevados da cidade, e que, se a Bersabéia terrena tomar a celeste como modelo, elas se tornarão uma única cidade. A imagem que a tradição divulga é de uma cidade ouro maciço, com tarraxas de prata e porta de diamante, uma cidade jóia, repleta de entalhes e engastes, que supremas e laboriosas pesquisas, aplicadas a matéria de supremo valor, podem produzir. Fiéis a essa crença, os habitantes de Bersabéia cultuam tudo o que lhes evoca a cidade celeste: acumulam metais nobres e pedras raras, renunciam aos efêmeros, elaboram formas de composta compostura.
Também crêem esses habitantes, que existe uma outra Bersabéia no subterrâneo, receptáculo de tudo o que lhes ocorre de desprezível e indigno, e eles zelam constantemente para eliminar da Bersabéia emersa qualquer ligação ou semelhança com a gêmea do subsolo. No lugar dos tetos, imagina-se que a cidade ínfera possui latas de lixo invertidas, das quais transbordam cascas de queijo, embalagens gordurosas, água de louça suja, restos de espaguete, velhas vendas. Ou mesmo que a sua substância seja aquela escura, maleável e densa como pez que escorre pelos esgotos prolongando o percurso das vísceras humanas, de buraco negro em buraco negro, até esborrachar-se no mais profundo sedimento subterrâneo, e que justamente a partir dos preguiçosos enroscados lá em baixo elevem-se giro após giro, os edifícios de uma cidade fecal de extremidades tortuosas.
Nas crenças de Bersabéia, existe uma parte de verdadeiro e outra de falso. É verdade que duas projeções de si mesma acompanham a cidade, uma celeste e uma infernal; mas há um equívoco quanto aos seus conteúdos. O inferno incubado no mais profundo subsolo de Bersabéia é uma cidade desenhada pelos mais prestigiosos arquitetos, construída com os materiais mais caros do mercado, que funciona em todos os seus mecanismos e relojoaria e engrenagens, com ornamentos de passamanaria e franjas e falbalá pendurados em todos os tubos e vielas.
Preocupada em acumular os seus quilates de perfeição, Bersabéia crê que seja virtude aquilo que a esta altura é uma melancólica obsessão de preencher os receptáculos vazios de si mesma; não sabe que os seus únicos momentos de abandono generoso são aqueles em que se desprende, deixa cair, se expande. Todavia, no zênite de Bersabéia gravita um corpo celeste que refulge com todo o bem da cidade, reunido em torno do tesouro dos resíduos: um planeta que desfralda cascas de batata, guarda-chuvas quebrados, meias gastas, cintilantes cacos de terracota, botões perdidos, embalagens de chocolates, lajeado de bilhetes de bonde, fragmentos de unhas e de calos, cascas de ovo. Essa é a cidade celeste e em seu céu correm cometas de cauda longa, emitidos para girar no espaço como o único ato livre e feliz de que são capazes os habitantes de Bersabéia, cidade que só quando caga não é avara calculadora interesseira. I

Ítalo Calvino em “As Cidades Invisíveis” (1972)

11.11.05

Inspiração anti(e)-calvinista

TEXTURA

“Do mundo que se desfaz, o que gostaria de salvar é a coisa mais frágil: aquela ponte marinha entre seus olhos e o sol poente.” – Espada de Sol- Palomar- I. Calvino

Conhecer-se
Sendo filho
Do pó do mundo
Reconhecer-se
Ser-se
Ser se
E ser,
Exercer
O desígnio da contemplada
Esbelteza ostentada,
Espada dourada no mar
Derramada ao olhar

Todo dia em ponto,
Todo o dia em ponto,
Todo o dia em pontos
De sensação-memória-imaginação

Bolhas superpõem-se em camadas

Confundir-se ao mundo
Como água e ar na queda
Do leito do rio profundo
A germinar a ponte inquieta,
Espessura da camada de espuma
Figurada em brancura
Somada da luz refletida
Pelos corpos das bolhas retidas

O branco (a)tinge a retina
Encanta a( )cortina
Da cachoeira,
Disfarça a rotina
Da corredeira da queda
Como reconhecer-se mundo
Aflora a morfina
Do tempo,
Faz a certeza da vida
Revelar-se perfeição
Da textura das pétalas
Do dia-a-dia.


05/11/2005
BIU

28.10.05

Um mês e meio...

Delícia de Menina

Malícia, carícia: que delícia...
Sentimentos me acometem, regem
Minha existência de ti se enebria
Forças perante ti desfalecem

Olhares, movimentos atentos
Singelos detalhes a observar
Sina de caçador, intento
Desejos fulminantes saciar

Efêmera a dinâmica do impulso
Sutilezas que governam decisões
Preciso momento do bote aguço
Esperado contraponto de razões

“Ante o brilho do seu olhar,
A maciez de sua pele,
A delicadeza de suas mãos,
A turgidez de seus seios,
A forma afeminada de suas curvas
E de todo o seu existir
Como hei de resistir
Se minha sorte é tudo isto saborear”
José Mialichi



Restorno

Dicionários não servem
Ao não-palavra;
Não servem ao ignorante,
Descrente dos conceitos;

A crença na realidade deste chão
Independe de sua explicação,
Reside no simples tocá-lo
Com a simplicidade complexa do tato.

Faz-se o que diante do novo? Um bicho novo?
Mariposa?

Eis-nos atados á palavra
Como a mariposa a essas paredes.

Um gradiente de luminosidade é um conceito?
Alfabeto da escala de tons de cinza?

Simplesmente espera a aurora
De sua clarificação, paciente
Em sua limitação.

Navega pelos tons
Como por cidades
Ciente de que palavras
São detalhes, nuances, grãos de areia
No concreto deserto da realidade.


BIU
25/10/2005


13.9.05

Nada a acrescentar

Ode à Alegria
(João Silvério Trevisan)

Mesmo que eu não tenha motivo aparente para me alegrar.
Mesmo rastejando neste chão de equívocos
que é a noite escura da existência,
ah, eu me deixo tomar por uma Alegria
que brota do mais alto e do mais baixo e de todos os lados
porque o centro do mundo e o próprio eixo do universo
batem aqui, exatamente onde estou
onde SOU
Dizem que o mundo mudou muito!...
Hoje já tem divórcio...
Dizem que o lundu virou maxixe
Que virou samba que virou... sei lá
Dizem que o homem já foi à lua
mas o negro brasileiro até hoje não se libertou
Dizem que a vocação do Brasil é à deriva... Será?!
Dizem que logo-logo vão descobrir
A cura completa da AIDS mas
o ser humano continuará incurável!
E dizem que eu vou morrer do coração. Quem sabe?!
O que eu sei é que ainda que eu tenha compreendido todos os
mistérios, se não tiver Amor,
eu não terei compreendido nada
O que eu sei - é que ainda - que eu tenha -
Compreendido - todos os mistérios...
Se não tiver Amor - eu não terei compreendido nada
O que eu sei,
é que TODOS precisamos beber da ALEGRIA
da Alegria - que é a face visível do Amor.
Eu sei que o tempo todo a grande Morte nos espreita,
Sei o quanto é cruel
estarmos assim diante das trevas
E possuído de todas as dúvidas
Mas sei também que existe um SIM!
E repito que este SIM foi, é e será, sim, a Alegria!
a Alegria-Pássaro que estende suas asas sobre nós
e nós sorrimos, apesar de tudo e de tudo
E eu respondo a todos os insultos
Com uma alegria...íssima
E digo ao mundo que se um vier, eu a defenderei
E se três ou quinhentos vierem, eu a defenderei
Eu a defenderei contra todos os horrores,
Defenderei, defenderei
e responderei a todas as infâmias com Alegria
e ainda que eu morra (ouviu, Deus?)
Ainda que eu morra, como um cão bravio
defenderei minha capacidade (mortal!)
de viver em alegria!

8.9.05

Caranguejos

Risoflora

Chico Science e Naçâo Zumbi


Eu sou um caranguejo e estou de andada
só por sua causa, só por você, só por você
e quando estou contigo eu quero gostar
e quando estou um pouco mais junto eu quero te amar
e aí te deixar de lado como a flor que eu tinha na mão
e a esqueci na calçada só por esquecer
apenas porque você não sabe voltar pra mim
Oh Risoflora! vou ficar de andada até te achar
prometo meu amor vou me regenerar
Oh Risoflora! não vou dar mais bobeira dentro de um caritó
Oh Risoflora, não me deixe só
Eu sou um caranguejo e quero gostar
Enquanto estou um pouco mais junto eu quero te amar
E acho que você não sabe o que é isso não
E se sabe pelo menos você pode fingir
E em vez de cair em tuas mão preferia os teus braços
E em meus braços te levarei como uma flor
Pra minha maloca na beira do rio, meu amor!
Oh Risoflora!
Vou ficar de andada até te achar
Prometo meu amor vou me regenerar
Oh Risoflora! Não vou dar mais bobeira dentro de um caritó
Oh Risoflora, não me deixe só

29.8.05

Parir-se

Ecdise

Emaranham-se hifas
Sobre medos persistentes,
Enroscam-se pífias
Sobre menos importantes

Com formas sutis e variadas,
Explosões de alegria, num micélio,
Desmontam o resto de mistério,
Desfolham as metmorfoseadas.

Desgarram-se lascas
Rasgadas da carne costurada
Sobre realidades opacas.
E a ecdise faz-se sa(n)grada.

Era soterro de estigmas
Encrustrados
Na serendipidade
Dos detalhes de mim
Em auto-comiseração.

A ponta da espada do incomodo
Espeta a matriz de esporos
E arrasta a vontade do novo,
De tear tecidos não escuros...

E nasce um corpo
Sob o sol da bondade
Incipiente corpo de verdade
Nutrido do esterco do porco

Nasce frágil
Mostra fácil a pele pálida
Numa brandura ávida
Por ignorar o passado,
Corar-se no seio da amizade,
Ver-se livre do sonho projetado,
E ser, após a ecdise da realidade,
Vivo na soberba humildade.


BIU
29/08/2005

Serendipidade: arte de transformar detalhes, aparentemente insignificantes, em indícios que permitam reconstruir toda uma história

26.8.05

"...Alta noite já se ia..."

Trilha

Encapuzado.
Num punho, o fogo lamparina
No outro, o cajado tremelica.
Pé e cabeça calejados
Pelo caminho caminhado.

O homem peregrina na terra hostil
Em busca daquilo que ofusca
E afasta a esquina da vida sutil,
De ser tua a sua vida que enrosca.

Neste tecido ilusório de contrários,
Tece soluções a males primários;
Por operações inusitadas
Inocula belezas bordadas.

Dotado do dom de doar
Pesquisas em palavras,
Escrutina as dores do ar,
Donde ardem tesouros, das lavras.

A dor extirpada
Pelo caminho caminhado
Liberta o homem mistificado
E rasga na face fechada
Uma trilha ao sorriso
De ver teu o seu caminho
Que só assim é caminhado.

BIU
22/08/2005

1.8.05

Vínculos.



há uma lágrima que não escorre

está pedrificada dentro de minha identidade

da qual não sei, onde é,

qual sei onde seria?

não escorre por que não há dor, nem

há forma de limpá-la a não ser evitá-la

devo ficar calado nas próximas horas

ficar calado é ficar de bem com o ódio

a plenitude do silêncio é a ferramenta que sustenta

o ócio dos dias e o boçal das famílias

da sujeira impregnada por de baixo das pálpebras

Sei que nada é divino

nada é mistério

porque o mistério é a dor da consternação

há uma lágrima de concreto feito viga

sobrepõe a minhas mãos cansadas, as veias rotas,

caminhos inerentes, escolhas punjentes.

José E. de Castro Ortega


A implosão da mentira (Por Afonso Romano de Sant'Anna)

"Mentiram-me.
Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.


Mentem sobretudo impunemente.
Não mentem tristes,
alegremente mentem.
Mentem tão nacionalmente
que acho que mentindo história a fora
vão enganar a morte eternamente.


Mentem, mentem e calam
mas nas frases falam e desfilam de tal modo nuas
que mesmo o cego pode ver a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura,
mas não se chega à verdade pela mentira
nem à democracia pela ditadura.


Evidentemente crer que uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo permanentemente.


Mentem, mentem caricaturalmente,
mentem como a careca mente ao pente,
mentem como a dentadura mente ao dente
mentem como a carroça à besta em frente,
mentem como a doença ao doente,
mentem como o espelho transparente
mentem deslavadamente como nenhuma lavadeira mente ao ver a nódoa sobre o
rio
mentem com a cara limpa e na mão o sangue quente,
mentem ardentemente como doente nos seus instantes de febre,
mentem fabulosamente como o caçador que quer passar gato por lebre
e nessa pilha de mentiras a caça é que caça o caçador
e assim cada qual mente indubitavelmente.


Mentem partidariamente,
mentem incrivelmente,
mentem tropicalmente,
mentem hereditariamente,
mentem, mentem e de tanto mentir tão bravamente
constróem um país de mentiras diariamente."


19.7.05

Nada a declarar...

A Máquina do Mundo
Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se a majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter suado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuras em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo".

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animaise
chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene

sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relancee
me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima - esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Plágio internauta

A Terra parou!?
Ou a web caiu...

15.7.05

Porque o jogo começa 0x0 e não pode terminar negativo...

Te Amo

Te amo
Te amo de uma maneira inexplicável.
De uma forma inconfessável.
De um modo contraditório.
Te amo
com meus estados de ânimo
que são muitos, e mudam de humor continuamente.
Pelo que já sabe,
O Tempo.
A Vida.
A Morte.
Te amo
Com o mundo que não entendo.
Com as pessoas que não compreendo.
Com a ambivalência de minha alma.
Com a incoerência de meus atos,
Com a fatalidade do destino.
Com a conspiração do desejo.
Com a ambiguidade dos fatos.
Ainda quando te digo que não te amo, te amo.
Até quando te engano, não te engano.
No fundo, levo a cabo um plano,
para amar-te... melhor.
Pois, ainda que não creias,
minha pele sente falta enormemente da ausência de tua pele.
Te amo.
Sem refletir,
inconscientemente,
irresponsavelmente,
espontaneamente,
involuntariamente,
por instinto,
por impulso,
irracionalmente.
Com efeito nao tenho, argumentos lógicos,
nem sequer improvisados
para fundamentar este amor
que sinto por ti,
que surgiu misteriosamente do nada,
que não tem resolvido magicamente nada,
e que milagrosamente, de pouco, com pouco ou nada tem melhorado o pior de mim.
Te amo.
Te amo com um corpo que não pensa,
com um coração que não raciocina,
com uma cabeça que não coordena.
Te amo
incompreensivelmente.
Sem perguntar-me, porque te amo.
Sem importar-me porque te amo.
Sem questionar-me porque te amo.
Te amo
simplesmente porque te amo.
Eu mesmo não sei porque te amo

PABLO NERUDA

Um dia disseram...

Vc dialoga com o olhar.
E de repente, intercalando silêncio com sorriso, muito é dito.
E num outro instante, está imerso
E se entregar à vida, fechar os olhos
No momento certo buscar o mínimo significado da existência
Dentro do que pode ser denso o suficiente para consumir
Para embriagar de si mesmo.
E que feche os olhos pra tirar de cada instante
o que pode se tornar sublime ao coração.

8.7.05

Dias de hoje


Weary with toil, I haste me to my bed,
The dear repose for limbs with travel tired;
But then begins a journey in my head,
To work my mind, when body's work's expired:
For then my thoughts, from far where I abide,
Intend a zealous pilgrimage to thee,
And keep my drooping eyelids open wide,
Looking on darkness which the blind do see
Save that my soul's imaginary sight
Presents thy shadow to my sightless view,
Which, like a jewel hung in ghastly night,
Makes black night beauteous and her old face new.
Lo! thus, by day my limbs, by night my mind,
For thee and for myself no quiet find.

Shakespeare


Luto do Luto

Lutar o luto.
O nascimento do luto do luto
Luta contra o embrulhado em preto
Vindo do fraldário,
Insígnia do eterno luto.

Impedido de ser feliz por estar sempre
A encobertar o luto,
Designado a absorver e ser solidário ao luto
Encobri-lo

Ser luto e repará-lo sendo o morto que vive

O luto da honestidade,
Da sinceridade,
Da decência,
Da fraternidade,
Do companheirismo...

Assopra o luto

Supera a espera de ver o vento soprar
A nevoa do horizonte longínquo.
Espera e supera a esfera do chorar
Vociferado em vento inócuo.

O sopro rebenta o peito
E rasga a tristeza do momento
Em cacos para um vitral
Mais um frente as sutilezas do real.

Destino crucificado
Desde a raiz
Cruza a matiz
Lambuzada de inconformismo.

Fa(r)dados a lamentar
O infortúnio que enforca
A vida curiosa e palpitante
Imersa em significados.

É a vez do luto do luto.

Novos paradigmas e signos,
Pois ainda somos homens exímios
E na busca do significado absoluto
Fitemos e sejamos

O desejo do Puro Tocar no Tempo

BIU
06/07/2005



Cânticos

...
Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acaba todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.


Cecilia Meireles


Eu

Foi eu , na primeira vista causa e espanto,
Juro, não ter culpa, na segunda, o susto se apazigua e vem,
as pessoas a cuspir porque assim é mais fácil,
conforme a cartilha específica das coisas...

Recuar e regredir em mãos dadas é o exímio amor
que sem o efetivo catarro do fato se torna vazio...
Evacuar a área como resíduos
deixar para trás história e vida
e o cometa infalível a se chocar com outros muros, outros horizontes.


Zé Ortega
07/07/2005

2.7.05

Saboreando o Momento

"O TEMPERO DA VIDA"

À BIBA

RESSUSCITAR
RE-SUSCITAR
PITADAS SUSCITAM A VIDA DAS CINZAS
DE CINZAS DA VIDA À VIDA DAS CINZAS...

O QUE HÁ DE VIDA NAS CINZAS
VEM DOS DEDOS FRICCIONADOS
E DO FAMILIAR CALOR QUE DAÍ PINGA
COMO O DO FOGO DIVINIZADO
POR LEVAR DA MORTE AO TEMPERO DA VIDA.

PITADAS DE VENTOS SOLARES DESPEJAM
A POEIRA CÔSMICA, CINZAS DE ESTRELA
FECUNDANDO A FÉRTIL TERRA,
ENQUANTO FÓTONS DO REI SOL BRADAM
À CULINÁRIA LOCAL
"DAS CINZAS À VIDA".

E NAQUELA LINGUADA INFANTIL,
OS SABORES DA VIDA VINCAM AS BOCHECHA
SEM CURVATURAS POR QUE ESCORREM
OS SEGREDOS DA VIDA REPLETA, SEM BRECHAS.

RISO E LÁGRIMAS SE CRUZAM E SEGUEM
TROCADOS NA INFLEXÃO FACIAL...

TEMPEROS

VIVER EM BEM-QUERER,
EM TEMPERAMENTO TEMPERADO
PELAS TROCAS SALPICADAS DE TOQUES
INVISÍVEIS COMO O SAL DOS QUITUTES,
O SONHO NO REAL MERGULHADO
E A POEIRA QUE JAZ NO VIVER.

CULINÁRIA É DE PÓ E MORTE.
EM MEDIDAS SUTIS É
DA VIDA A ARTE,
UM BEIJO NO OLHO:
NÃO MOSTRA MAS AQUECE O CORPO,
SUSCITA O PURO AMAR,
UM CAMINHO QUE ESCOLHO...

BIU
25/06/2005

Dica de Ana

Este livro...

Este livro é de mágoas. Desgraçados
Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode, talvez, senti-lo...e compreendê-lo.

Este livro é para vós. Abençoados
Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!
Bíblia de tristes...Ó Desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!

Livro de Mágoas...Dores...Ansiedades!
Livro de Sombras...Névoas e Saudades!
Vai pelo mundo...(trouxe-o no meu seio...)

Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de Mágoas cheio!...

Florbela Espanca

6.6.05

Inspetora Lispector

Eu sei mas não Devia

Clarice Lispector

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma
a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduiche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e
ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso
de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
Agente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.

Quase um mês depois...

Jardim de mim

Como a docilidade escorrida do momento,
A presença arrasta o viscoso sentimento
De enternecimento,
De bem-estar perante o rebentar
Do viver em harmonia com o luar.
Sem querer pra onde, basta andar...

Andar, remar...
Notando o turbilhão de sensações
Que povoam o mais tenro tocar,
Sutilmente tocar a transparência
Do ar,
Da água
E do irretocável ser,
Apto a estourar as amargas amarras
Que enovelam o simples amar.

Viver e ver-se livre do ter de viver
Apenas.
Colhendo almofadados tufos de bem-querer,
Preocupado em acalentá-los,
Sutilmente exibi-los ao vento
E deixá-los
Acomodar em ramos de louro,
Acariciar o espírito do loureiro,
Como o mar faz ao vento,
Repleto daquelas dobraduras magistrais
Cuja concavidade, moldura do convexo,
Remete ao atemporal,
Esculpi o momento livrando-o de todo seixo.

E o bem-querer escorre o ramo,
Refresca-se no frescor de sua seiva
Percorrendo de delicadas folhas a beira,
Adocicando-se do que há de belo no humano.

Desprende um silêncio
Ávido
Impávido
Alça do ímpeto do desejo
De ser motivo de sorriso,
Sorrir pelo sorriso...

E no sôfrego titubear das gotas
Diante de um dentre muitos pedúnculos,
Da escolha do caminho seguro,
Soltar-se e pingar no solo das horas.
...

Eis que dali brota
Uma flor, toda.
Destinada a admirar o loureiro,
Embalá-lo em perfumes
E assim com muitas gotas...
Até que o inédito jardim
Seja o mais belo de mim,
Pleno de sentimentos, cores nunca vistas.

Calmo jardim!
Mesmo com possíveis vendavais
Pois sob o feitiço da sombra,
Irradiado por sua perene primavera,
Faz de momentos eternidades,
Vê a beleza apolínea no tudo e no nada, a paz.

BIU
27/05/2005

12.5.05

Ter a pia I

Estilingue

Cavidade ressonante de versos
Exibe uma trinca
E os dedos do que brinca,
Sôfregos, empurram em dor imersos

O esconder como ser
Repele a plenitude do momento
E a porosidade do inabalável escondido
Revela um bebê impedido de viver

Viciado em ser-lhes especial,
Centro da atenção impressionada,
Chega a desprezar os demais do palanque umbigal
E não reter o mundo pois até a sua em si está por demais centrada

Acuados em ser(,) seres acuados
Pela cobrança que encobre o viver,
Buscamos algo sempre a correr
Como uma fuga do mi ao si dos refugiados

Urge esmigalhar a casca
E aguçar tantos quanto sejam os sentidos
Livres do sangue viscoso dos momentos não-vividos
E dar-se ao singelo sorriso
De ver os estilhaços da máscara

BIU
10/05/2005

10.5.05

As arestas da Terra cheia

composicação
Enceguicido por esse teu corpo,
paisagem lunar em noite de Terra cheia,
vejo que o Mar da Tranquilidade me hipnotiza
com sua ausência de algas e sereias.
Mas quem quer atmosfera? Basta
a vertigem veloz soprando nos cabelos
que ornam as regiões mais aprazíveis
da imensidão resplandecente e sem arestas.

Rubens Rodrigues Torres Filho em "Poemas Novos (1994-1997)"

3.5.05

Vinicius "Amador" de Moraes, longe de amador...

A brusca poesia da mulher amada

Longe dos pescadores os rios infindáveis vão morrendo de sede lentamente...
Eles foram vistos caminhando de noite para o amor – oh, a mulher amada é como a fonte!
A mulher amada é como o pensamento do filósofo sofrendo
A mulher amada é como o lago dormindo no cerro perdido
Mas quem é essa misteriosa que é como um círio crepitando no peito?
Essa que tem olhos, lábios e dedos dentro da forma inexistente?

Pelo trigo a nascer nas campinas de sol a terra amorosa elevou a face pálida dos lírios
E os lavradores foram se mudando em príncipes de mãos finas e rostos transfigurados...

Oh, a mulher amada é como a onda sozinha correndo distante das praias
Pousada no fundo estará a estrela, e mais além.

Rio de Janeiro, 1938


A brusca poesia da mulher amada (II)

A mulher amada carrega o cetro, o seu fastígio
É máximo. A mulher amada é aquela que aponta para a noite
E de cujo seio surge a aurora. A mulher amada
É quem traça a curva do horizonte e dá linha ao movimento dos astros.
Não há solidão sem que sobrevenha a mulher amada
Em seu acúmen. A mulher amada é o padrão índigo da cúpula
E o elemento verde antagônico. A mulher amada
É o tempo passado no tempo presente no tempo futuro
No sem tempo. A mulher amada é o navio submerso
É o tempo submerso, é a montanha imersa em líquen.
É o mar, é o mar, é o mar a mulher amada
E sua ausência. Longe, no fundo plácido da noite
Outra coisa não é senão o seio da mulher amada
Que ilumina a cegueira dos homens.Alta, tranqüila e trágica
É essa que eu chamo pelo nome de mulher amada.
Nascitura. Nascitura da mulher amada
É a mulher amada.
A mulher amada é a mulher amada é a mulher amada
É a mulher amada.
Quem é que semeia o vento? – a mulher amada!
Quem colhe a tempestade? – a mulher amada!
Quem determina os meridianos? – a mulher amada!
Quem a misteriosa portadora de si mesma? A mulher amada.
Talvegue, estrela, petardo
Nada a não ser a mulher amada necessariamente amada
Quando! E de outro não seja, pois é ela
A coluna e o gral, a fé e o símbolo, implícita
Na criação. Por isso, seja ela! A ela o canto e a oferenda
O gozo e o privilégio, a taça erguida e o sangue do poeta
Correndo pelas ruas e iluminando as perplexidades.
Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas.
Poder geral, completo, absoluto à mulher amada!

Rio de Janeiro, 1950


A brusca poesia da mulher amada (III)

A Nelita

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado
Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido herói sem mácula
Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a bilirrubina
Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco quilos
Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as confidências
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.
Eis que se anuncia de modo sumamente grave
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância
já me chega o rastro.É ela uma menina, parece de plumas
E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos ventos
Empós meu canto. É ela uma menina.
Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina
Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes
Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos
Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos
Para cantar seus réquiens e os falsos profetas
A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras.
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa
Em rodopios nítidos
Criando vácuos onde morrem as aves.
Seu corpo, pouco a pouco
Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo
Como uma escura rosa voltejante
Surgida de um jardim imenso em trevas.
Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos!
Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!
Alvoroçai-me, auroras nascituras!
Eis que chega de longe, como a estrela
De longe, como o tempo
A minha amada última!

Rio de Janeiro, 1963

26.4.05

Pela estreita fresta da poesia

Fresta
Fernando Pessoa

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheço,

E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

25.4.05

Uma longa canção

Life Is A Long Song
(Jethro Tull)

When you're falling awake
and you take stock of the new day,
And you hear your voice croak
as you choke on what you need to say,
Well, don't you fret, don't you fear,
I will give you good cheer.

Life's a long song.
Life's a long song.
Life's a long song.

If you wait then your plate I will fill.
As the verses unfold and your soul suffers the long day,
And the twelve o'clock gloom spins the room,
You struggle on your way.
Well, don't you sigh, don't you cry,
Lick the dust from your eye.

Life's a long song.
Life's a long song.
Life's a long song.

We will meet in the sweet light of dawn.

As the Baker Street train spills your pain all over your new dress,
And the symphony sounds underground put you under duress,
Well don't you squeal as the heel grinds you under the wheel.

Life's a long song.
Life's a long song.
Life's a long song.

But the tune ends too soon for us all.

20.4.05

Dica de Beto

SE

Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.
Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,de sonhar -
sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.
Se és capaz de arriscar numa única partida,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.
De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.
Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!

Rudyard Kipling
Tradução de Guilherme de Almeida

19.4.05

Paraíso em foco

Domenico di Masi em “Criatividade” diz:

“A arte e a religião foram, portanto, as duas grandes criações consoladoras esboçadas durante milênios da Pré-história e aprimorada durante séculos da História. Mas, se a arte pode oferecer somente algumas alegrias compensadoras para as dores existenciais, a fé num mundo depois da morte, além de exorcizar a duração demasiadamente breve da vida terrena, pode até descortinar a esperança de uma felicidade eterna, simétrica às atribulações padecidas na vida e perfeitamente de acordo com as aspirações humanas”

“Não há sorte incerta, rara, fugaz sobre esta terra que não se torne segura, plena e perene nas descrições paradisíacas”

“As figurações do paraíso, portanto, e a inexaurível criatividade que as colocariam constituem outras fontes copiosas de informação sobre como o homem teria desejado viver sobre a terra e sobre o que ele entendia por felicidade. Naquilo que nos diz respeito de forma específica, elas nos oferecem testemunhos indiretos originais para reconstruir não só as formas de criatividade que o homem produziu, mas também a relação ambígua de ódio e amor que ele manteve seja com o trabalho, seja como o ócio”

8.4.05

Fenda na poesia

Abdução Anfíbia

Um rasgo no prosaico
Suspende o coaxar
Entre um e outro inseto
E engole um pulo másculo
Rumo ao incerto porém irresistível

O trato repentino da arte desconfortável
Transforma o corpo lânguido
Em sustentáculo do desejo
Vetor da física à doença do sentimento
Prostra-se o sapo
Refém da memória do belo
“Numa transversal do tempo”

O temido desconhecido
Por hora abafa o entusiasmo,
Amortece os estímulos
Até que o pensar novo
Revela-se benéfico
Num revelar-se construído sobre ruínas,
Coletado do sumo que escorre
Da condensação escultora do vapor do momento
Sobre a superfície gélida das trilhas do eu


Aperfeiçoadas esculturas
Afeiçoam o anfíbio
Saliente no sutil torcer de cabeça
Frente o infinito belo
Debaixo do rasgo transversal do tempo

Cuooooxe.............Cuuuoooooooooooooxxxxeee


BIU
07/04/2005

6.4.05

Shakespeare e Rilke

CXLI.
William Shakespeare

In faith, I do not love thee with mine eyes,
For they in thee a thousand errors note;
But 'tis my heart that loves what they despise,
Who in despite of view is pleased to dote;
Nor are mine ears with thy tongue's tune delighted,
Nor tender feeling, to base touches prone,
Nor taste, nor smell, desire to be invited
To any sensual feast with thee alone:
But my five wits nor my five senses can
Dissuade one foolish heart from serving thee,
Who leaves unsway'd the likeness of a man,
Thy proud hearts slave and vassal wretch to be:
Only my plague thus far I count my gain,
That she that makes me sin awards me pain.


Ich fürchte mich so vor der Menschen Wort
Rainer Maria Rilke

Ich fürchte mich so vor der Menschen Wort.
Sie sprechen alles so deutlich aus:
Und dieses heißt Hund und jenes heißt Haus,
und hier ist Beginn und das Ende ist dort.

Mich bangt auch ihr Sinn, ihr Spiel mit dem Spott,
sie wissen alles, was wird und war;
kein Berg ist ihnen mehr wunderbar;
ihr Garten und Gut grenzt grade an Gott.
Ich will immer warnen und wehren: Bleibt fern.
Die Dinge singen hör ich so gern.
Ihr rührt sie an: sie sind starr und stumm.
Ihr bringt mir alle die Dinge um


Tradução de Carlos Bechtinger
Eu me assusto tanto diante da palavra dos homens

Eu temo tanto a palavra dos homens
Eles explicam tudo tão claramente
E isso se chama cachorro e aquilo se chama casa,
E aqui é o começo e o fim é lá.

Me assusta também a reflexão de vocês,
o jogo de vocês com escárnio
Vocês sabem de tudo, o que foi e o que virá.
Nenhuma montanha é mais maravilhosa para vocês
Os seus jardins e o bem de vocês se limitam em Deus
Eu quero sempre avisar e combater: Fique longe disso!
Eu escuto com tanto prazer as coisas cantadas
Vocês não a tocam. Elas são mudas e teimosas.
Vocês todos para mim matam as coisas.

5.4.05

Poetizas em amostra

Meu Deus, me dê a coragem
Clarice Lispector

Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braçoso meu pecado de pensar.


Todas as vidas
Cora Coralina

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, Global Editora, 1983 - S.Paulo, Brasil


O amor no éter
Adélia Prado

Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas, os bicos mergulhados
na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniço na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escrever-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde.

Poesia reunida, Editora Siciliano, 1991 - S.Paulo, Brasil

PS: um site que reune uma boa amostra de poetizas brasileiras e traduzidas é "Mulheres que amo" :http://utopia.com.br/poesia/

31.3.05

Palavras Amigas

“Mensagem aos Viajantes”

De tudo que me foi dito
Uma mulher, acredito
Preencheria o vazio
De toda alma em estio

Sigo trilhas; conquisto montanhas
Cume, falésias, dunas, cavernas
Acidentes do terreno e da alma
Busca insólita pela taverna

Sobre o mundo repousa o espírito
Este ente, caráter holístico
Ante tudo, sobre nada habita
Desorientando aquele que fica

E assim, a entreter o ciclo
Vislumbra o viajante a mãe Terra
Segue o rumo, indefinido
Perante a qual tudo se encerra
José Roberto Mialichi
31/03/2005

30.3.05

Poeta Alemão

DICHTER

Ter-te
O Teu
Ser Teu
Absorto em Ti
O poeta é Teu
Enquanto o Teu é do poeta
E segue tua trilha rumo ao eu
Tanto o Teu quanto o Meu

A poesia é Tua
Coleta os favos de Mel
Inclina-os
E deixa escorrer o Teu Eu
Lambuza-se de Ti
Infiltra-se do Ti
Seja o Te
Um sentimento
Um momento
Objeto
Esquecimento
Um pensamento
Seu ou Teu

Ser o Teu
Quando as curvas elásticas do S
Acomodam os ângulos do T
Fazendo do Teu Seu
Numa simbiose almofágica
Num voyerismo dissimulado
Pois arde a presença do Dich no poeta
Que aglutina Teu sER em TER
Transfigura Mich em DICH
Nascendo como DICHTER,
Um poeta em ser!


Lucrécio Rodrigues Torres
30/03/2005

18.3.05

Un pò di religione

Culto à palavra

Vossa Excelência, licença para colocá-la nessa brancura,
Parte do seu infindável reino.
Solte-se por essa madeira,
E, de alguma maneira, mostre sua força.
Um piparote já é moldura,
Loucura.
Seu palco é o mundo, é o fundo.
É a clareira sem beira.

Quando colocaram Vossa Santidade na Rocha,
Saímos da Pré
E viramos História.
Nasceu a memória.
Ouvir é glória!
Chega pelo ar nessa parabólica,
Colabora ou apavora: a História.

Vossa Eminência conduz essa peça chamada vida.
É o pé.
A Senhora atravessa os mares, invade os lares,
Afasta as feras, acende trevas.
Permite o culto aos deuses, a fé das montanhas.
É a escada do porão

Sobre a Senhora não há domínio;
Mais forte que Sol,
Define a imensidão;
Mais profunda que o mar,
Mais romântica que o luar.

É-nos cevas.

Sua pá lavra, eleva, cala, safa, mata.
Você, Palavra, semeia
O Amor,
A dor,
Cultiva o sabor,
Planta o saber,
O viver: amplitude celeste.
Sem você, tudo some: a ciência, a religião...
Chegaria, Mestre, a peste.

Na medida em que ficamos íntimos,
E os pronomes tornam-se amigáveis,
Aproxima-se da natureza destinada, a de ser Humano
Graças ao seu infinito, existe ser humano.
Sem seu infinito,já éramos-
Clamor

BIU
14/10/1999

14.3.05

Gratidão

Na sombra

Muitas palavras já foram ditas,
Dentre as quais, há aquelas às arvores.
Eis mais algumas:
Sois a fonte de minha nutrição.
Suprais-me.
Algo de vós me deixa em suspensão.
Talvez a seiva.
Inundais-me de tal modo que às vezes explode uma explosão.
Afagais-me.
Viciais-me.
Acalmais-me.
Aquietais-me.
Chego até a me expor aos maltratos do vento, do frio,
Pois sei que a seiva é infinda.
Chego até a dispensar o Sol, a Primavera.
Pois sei que o calor é imediato.
Largo-me ao sabor dos ventos uivantes.
Chicoteio,
Vibro,
Oscilo, bestamente,
Pois sei que o pedúnculo é o mais intenso.
Abro o braço a tempestades.
Tomo cada pancada, mas me safais de cada.
Venceis a gravidade.
Sois imbatíveis.
Às vezes me enrolo e num espinho me transformo.
Às vezes me alargo e a vitória-régia do riacho está a cargo.
Permitis a metamorfose.
A redemoinhos faço pose.
Sonho na mais bela flor desabrochar,
Um inseto de pólen lambuzado hipnotizar.
Para num fruto evoluir.
Para ao chão direto ir.
Uma semente, esse glomérulo do amor, liberar,
No solo me infiltrar, brotar, crescer, crescer, crescer, viçosamente.
A ponto de uma certa altura ultrapassar.
E sob minha sombra para sempre vos resguardar,
Infinitamente, grato pela seiva que me faz viver,
Pelo Amor que de tão intenso,
Não conseguis conter.
Lucrécio Rodrigues Torres
13/02/2002

13.3.05

Anita

Odes Materna

Mãe, no seu ventre vivo o tempo!
Daí nasci e daí saí!
Retirei minhas primeiras energias. De você me nutri!
E, desde que saí, do seu peito vem meu sustento!
De onde eu tirava o leite puro,
Chega, a todo pulo, o amor seguro,
Onde me agarro enquanto a Terra gira!

Mãe, sou um fruto de você!!
Me orgulho de brotar de tal árvore!
Sou uma borboleta viciada em sua sombra!
Sou um pássaro, que, no seu ombro, fez o ninho!

Mãe, um Deus na Terra!
Aquela que do Olimpo fugira
Para sentir tamanha alegria:
A de povoar o mundo de vida!

Só mesmo um coração tão grande como o seu
Pode conter tanta felicidade!
Lembre-se: De você vem nossa vida;
Sem você não temos saída!

BIU


Como és bela, minha Mãe!!
Os movimentos, dotados de sem igual suavidade,
Fazem-te única, ao exalar o mais tenro amor.
A pureza desprende-se de tua maternidade
Como leite, a navegar todo sinal de dor.

Flutuas numa atmosfera de felicidade,
Processas tua contínua dor em feixes de sorrisos.
De certa moça e casal perdidos,
Emites selos que extirpam a opacidade.

Tua beleza é eterna, indivisível, imutável.
Pois é uma idéia. A idéia.
Acessível a todos, mas real só pra mim.

Não temas, minha mãe!!
E temas, minha mãe,
Pois teu temer faz de ti minha mãe!

BIU
7/10/2002

Modigliani

Una Modita sur l'Amour

Contrair o dorso
E recolher,
Erguer as espáduas
E absorver
O medo de fazer sofrer
Que acomete o real amador
Ao beijar torto o ente.

Dói-lhe demais qualquer injúria
E os dedos pintam, reféns da dor,
Harmonizam as fagulhas.

Recolher num reflexo
Que pode ferir
Por demais exaltado
E cerneoso
Receoso
Cerceoso
Ser-se os Ou
Na ânsia de ser e viver.

Viver como espelho do amor
Sem impressões
Nem as digitais
Intocavelmente viver
E fiar-se na fé
De ter o ser
Independente de ter
Para fazer do mi alegria
Do ti euforia
E do si o se da anarquia
Em busca da música da paz
Que não existe na alma que ama.
Culpa do jorro da dor
Que trata de esculpir as suavidades dessa alma
Como o tempo faz os riscos da palma

BIU
12/03/2005

10.3.05

Morte, Ciência Brasileira e Samba

Ciência e Arte
(Cartola e Carlos Cachaça)

Tu és meu Brasil em toda parte
Quer na ciência ou na arte
Portentoso e altaneiro
Os homens que escreveram tua história
Conquistaram tuas glórias
Epopéias triunfais
Quero neste pobre enredo
Reviver glorificando os homens teus
Levá-los ao panteon dos grandes imortais
Pois merecem muito mais
Não querendo levá-los ao cume da altura
Cientistas tu tens e tens cultura
E neste rude poema destes pobres vates
Há sábios como Pedro Américo e César Lattes

PS: Ontem, 09/03/2005, morreu em Campinas, Cesare M. G. Lattes, um dos icones da ciência nacional, figura entre figuras que procuram promover a tão sonhada hegemonia nacional, acreditam que através da educação pode-se alavancar uma nação, escavam pelo buraco do subdesenvolvimento em busca de alternativas sólidas, orgulham-se de seu país e sonham ver espontâneo um sorriso na face de todo brasileiro. Nesse sentido achei oportuno esse samba, sinônimo de alegria ainda que imerso em tristeza...

3.3.05

Pessoas no tempo

Uns Versos Quaisquer
Fernado Pessoa

Vive um momento com saudade dele
Já ao vivê-lo . . .
Barcas vazias, sempre nos impele
Como a um solto cabelo
Um vento para longe, e não sabemos,
Ao viver, que sentimos ou queremos . . .

Demo-nos pois a consciência disto
Como de um lago
Posto em paisagens de torpor mortiço
Sob um céu ermo e vago,
E que nossa consciência de nós seja
Uma cousa que nada já deseja . . .

Assim idênticos à hora toda
Em seu pleno sabor,
Nossa vida será nossa anteboda:
Não nós, mas uma cor,
Um perfume, um meneio de arvoredo,
E a morte não virá nem tarde ou cedo . . .

Porque o que importa é que já nada importe . . .
Nada nos vale
Que se debruce sobre nós a Sorte,
Ou, tênue e longe, cale
Seus gestos . . . Tudo é o mesmo . . . Eis o momento . . .
Sejamo-lo . . . Pra quê o pensamento? . . .
11.10.1914
Realidade
Álvaro de Campos

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isto —
Nesta localidade da cidade ...

Há vinte anos!...
O que eu era então! Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)
Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava, então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui!

Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais
lembradamente de azul.
Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado físisca e moralmente: não quero imaginar nada...

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro,
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado,
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhamos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol,
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isso realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...

1.3.05

Rito à Linguagem

Código Virtuoso

Levanta dos percalços do sono
Um reexame dos ditames do acaso
E o rico perdurar dos zigues-zagues
Recobram afago (im)pedindo que os largue

A transfiguração da idéia fosca
Em sentido lingüístico
Gera construção da branca mosca
Sobre o papel meta e artístico.

O corte seco do charuto
É preciso, direto e enxuto,
Contra o discurso da fumaça cubana,
Rebuscado, fractal em sua gana,
Repleto de balbucios e balbúrdias,
Enfeitado de aparentes nonsenses e rédias.

A análise da virtude da virtuose
Expõe um narcisismo fétido,
Um palanque imóvel pela trombose
Das veias de arte do moleque ávido.

Sombras dos signos iluminados pela história,
Os significados não ficam,
Ultrapassam o tempo e não se findam
Nem em si, nem na civilizatória memória

Vivemos sob o código das idéias
Maestro de minúsculos filetes de protoplasma no cérebro
Rumo à música do paraíso da compreensão,
À sinfonia da harmonia e do mundo em vão


Lucrécio Rodrigues Torres
01/03/2005

28.2.05

Sharks and Men

Se os tubarões fossem homens

Bertold Brecht

'Se os tubarões fossem homens', perguntou ao senhor K. a filha de sua senhoria, 'eles seriam mais amáveis com os peixinhos?'
"Certamente, disse ele. Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos, com todo tipo de alimento, tanto animal quanto vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca e tomariam toda espécie de medidas sanitárias. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, lhe fariam imediatamente um curativo, para que não morresse antes do tempo.
Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres tem melhor sabor do que os tristes.
Naturalmente haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos tubarões.
Precisariam saber geografia, por exemplo, para localizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar.
O mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais belo e mais sublime do que um peixinho que se sacrifica contente, e que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam de sua felicidade futura. Os peixinhos saberiam que este futuro só estaria assegurado se estudassem docilmente.
Acima de tudo, os peixinhos deveriam voltar toda inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista, e avisar imediatamente os tubarões, se um deles mostrasse tais tendências.
Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os seus peixinhos, e lhes ensinariam que há uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões. Os peixinhos, iriam proclamar, são notoriamente mudos, mas silenciam em línguas diferentes, e por isso não podem se entender. Cada peixinho que na guerra matasse alguns outros, inimigos, que silenciam em outra língua, seria condecorado com uma pequena medalha de argaço e receberia um título de herói.
Se os tubarões fossem homens, naturalmente haveria também arte entre eles. Haveria belos quadros, representando os dentes dos tubarões em cores soberbas, e suas goelas como jardim que se brinca deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos nadando com entusiasmo para as gargantas dos tubarões, e a música seria tão bela, que seus acordes todos os peixinhos, como orquestra na frente, sonhando, embalados, nos pensamentos mais doces, se precipitariam nas gargantas dos tubarões.
Também não faltaria uma religião, se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa apenas na barriga dos tubarões.
Além disso se os tubarões fossem homens também acabaria a idéia de que os peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores poderiam inclusive comer os menores. Isso seria agradável para os tubarões, pois eles teriam com maior freqüência, bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores detentores de cargos, cuidariam da ordem entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, construtores de gaiolas, etc.
Em suma, se os tubarões fossem homens, haveria uma civilização no mar."

25.2.05

Revoadas

T

O tato tatiado de T
Tateia as viculosidades de minha alma
Escorrega por meus vícios com calma
E acolchoa dores cristalizadas na carne.

São toques serenos e cheios de emoção
Embevecido em admiração, adimiro tal beleza,
Estarreço-me diante da beleza de tua pureza
Agarro-me a seus lábios e percorro o coração.

Quando um certo ar lhe invde,
Suas pálpebras caem repetidas vezes
E suas narinas abrem-se numa dinâmica virginal
Tornando musa de pensamentos.

Lustros do paraíso cegam o futuro
E resplandecem o momento vivente,
Todas (mesmo poucas) as vezes em que, videntes,
Os brilhos de seu corpo e alma tocam meu escuro.

Uma esperança feliz recobre os contornos
E faz da terra céu ao tansmitir
Eternidade a este ente do amor,
A esta mulher que um bom homem nunca esqueçe.

T, tateie os frisos do monumento;
O monumento chamado momento,
Apenas por nós reconhecido.
Somos nada sem este
Como o sou na ausência de pensamento,
Fraco na ausência do visco de seus olhos,
O riso aberto em sua face,
O toque angelical da sua pele,
E o beijo epifânico da linha de sua boca.

BIU
07/01/2005

24.2.05

Sobre goiabas e tartarugas

Música: O Rancho da Goiabada
Autores: João Bosco & Aldir Blanc

Os bóias-frias
quando tomam umas birita
espantando a tristeza,
sonham com bife-a-cavalo,
batata-frita e a sobremesa
é goiabada-cascão com muito queijo,
depois café, cigarro e um beijo
de uma mulata chamada Leonor
ou Dagmar.
Amar
o rádio-de-pilha,
o fogão-jacaré, a marmita,
o domingo, o bar,
onde tantos iguais se reúnem
contando mentiras
pra poder suportar...
ai, são pais-de-santo,
paus-de-arara, são passistas,
são flagelados,
são pingentes, balconistas,
palhaços, marcianos,
canibais, lírios, pirados,
dançando-dormindo
de olhos-abertos à sombra
da alegoria
dos faraós embalsamados.



Baby Tortoise
D. H. Lawrence


You know what it is to be born alone,
Baby tortoise!

The first day to heave your feet little by little from the shell,
Not yet awake,
And remain lapsed on earth,
Not quite alive.

A tiny, fragile, half-animate bean.

To open your tiny beak-mouth, that looks as if it would never open,
Like some iron door;
To lift the upper hawk-beak from the lower base
And reach your skinny little neck
And take your first bite at some dim bit of herbage,
Alone, small insect,
Tiny bright-eye,
Slow one.

To take your first solitary bite
And move on your slow, solitary hunt.
Your bright, dark little eye,
Your eye of a dark disturbed night,
Under its slow lid, tiny baby tortoise,
So indomitable.

No one ever heard you complain.

You draw your head forward, slowly, from your little wimple
And set forward, slow-dragging, on your four-pinned toes,
Rowing slowly forward.
Whither away, small bird?
Rather like a baby working its limbs,
Except that you make slow, ageless progress
And a baby makes none.

The touch of sun excites you,
And the long ages, and the lingering chill
Make you pause to yawn,
Opening your impervious mouth,
Suddenly beak-shaped, and very wide, like some suddenly gaping pincers;
Soft red tongue, and hard thin gums,
Then close the wedge of your little mountain front,
Your face, baby tortoise.

Do you wonder at the world, as slowly you turn your head in its wimple
And look with laconic, black eyes?
Or is sleep coming over you again,
The non-life?

You are so hard to wake.

Are you able to wonder?
Or is it just your indomitable will and pride of the first life
Looking round
And slowly pitching itself against the inertia
Which had seemed invincible?
The vast inanimate,
And the fine brilliance of your so tiny eye,
Challenger.

Nay, tiny shell-bird,
What a huge vast inanimate it is, that you must row against,
What an incalculable inertia.

Challenger,
Little Ulysses, fore-runner,
No bigger than my thumb-nail,
Buon viaggio.

All animate creation on your shoulder,
Set forth, little Titan, under your battle-shield.

The ponderous, preponderate,
Inanimate universe;
And you are slowly moving, pioneer, you alone.

How vivid your travelling seems now, in the troubled sunshine,
Stoic, Ulyssean atom;
Suddenly hasty, reckless, on high toes.

Voiceless little bird,
Resting your head half out of your wimple
In the slow dignity of your eternal pause.
Alone, with no sense of being alone,
And hence six times more solitary;
Fulfilled of the slow passion of pitching through immemorial ages
Your little round house in the midst of chaos.

Over the garden earth,
Small bird,
Over the edge of all things.

Traveller,
With your tail tucked a little on one side
Like a gentleman in a long-skirted coat.

All life carried on your shoulder,
Invincible fore-runner.

From Tortoises 1921

21.2.05

O peso da verdade

"O conhecimento mata o agir; o agir requer que se esteja envolto no véu da ilusão - (...) -
não é a reflexão, não! - é o verdadeiro conhecimento, a ilusão da horrível verdade, que sobrepuja todo motivo que impeliria a agir, tanto em Hamlet quanto no homem dionísico."

F. Nietzsche em "O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música"


"A única coisa certa era o peso na boca do estômago, a suspeita de que algo não ia bem. Não se tratava sequer de um problema, mas sim de ter-se negado sempre, desde cedo, às mentiras coletivas ou á solidão rancorosa daqueles que começam a estudar os isótopos radioativos ou a presidência de Bartolomeu Mitre."

Julio Cortázar em "O Jogo da Amarelinha"

18.2.05

São Luís do Paraitinga

Carnaval 4 a 9 /fev/2005

com Um fim na alça
e oUtro atado à cintUra
mergUlhamos nUm caldeirão de cUltUra
e nadamos onde sombra não passa

pelo Viés das cortinas das dependUradas “Janelas da História”
VislUmbramos Um torpor
emergente da conViVência com esferas
extasiantes, alegres na dor.

as epiglotes titUbeiam e admitem!
respiramos Um caldo Viscoso,
cozido das lascas do dia-a-dia do povo,
processadas pelo gosto dos que temem o além.

ingredientes especiais (especiarias da terra) brincam
e brindam o pecUliar tempero
qUe encanta os tons do esmero
pelo sabor Brasil com que ressoam.

JUca Teles dá (-nos) ignição ao Lençol
qUe enoVela a Maricota e deVolVe-a
ao Pai do Troço qUe, em Vertigem, não se enVolVe
pois Vai no Bico do CorVo rUmo ao Sol.

e no Vórtice da colher de paU,
damos braçadas rUmo á Identidade Nacional
até qUe a Realidade recolhe-nos em sopa,
já temperados da Alegria Local,
embriagados de Amor e Poesia tUdo menos oca.

BIU
13/02/2005

Receita da Dona Cacilda

PS: Dona Cacilda é uma senhorita de 92 anos, miúda, e tão elegante,
que todo o dia às 8 da manhã ela já está toda vestida,
bem penteada e perfeitamente maquiada apesar de sua pouca visão
.

Receita da Dona Cacilda para se manter jovem:

Jogue fora todos os números não essenciais para sua sobrevivência.Isso inclui idade, peso e altura. Deixe o médico se preocupar com eles. Para isso ele é pago.

Freqüente de preferência seus amigos alegres. Os "baixo astrais" puxam você para baixo.

Continue aprendendo.Aprenda mais sobre computador, artesanato, jardinagem, qualquer coisa.
Não deixe seu cérebro desocupado. Uma mente sem uso é a oficina do diabo.
E o nome do diabo é Alzheimer.

Curta coisas simples.

Ria sempre, muito e alto. Ria até perder o fôlego.

Lágrimas acontecem. Agüente, sofra e siga em frente.

A única pessoa que acompanha você a vida toda é VOCÊ mesmo.

Esteja VIVO, enquanto você viver.

Esteja sempre rodeado daquilo que você gosta: pode ser família, animais, lembranças, música,
plantas, um hobby, o que for.

Seu lar é o seu refúgio.

Aproveite sua saúde. Se for boa, preserve-a. Se está instável, melhore-a. Se está abaixo desse nível, peça ajuda.

Não faça viagens de remorsos. Viaje para o shopping, para cidade vizinha, para um país estrangeiro, mas não faça viagens ao passado.

Diga a quem você ama, que você realmente os ama, em todas as oportunidades.

E LEMBRE-SE SEMPRE QUE:“A vida não é medida pelo número de vezes que você respirou,
mas pelos momentos em que você perdeu o fôlego...
de tanto rir...
de surpresa...
de êxtase...
de felicidade...”

17.2.05

Um pouco de nós

A Mente Humana
Iván Izquierdo
Centro de Memória do Instituto de Pesquisas Biomédicas da PUC-RS, Porto Alegre (RS), Brasil
Para a revista Muticiência


Tenho mais de quarenta anos dedicados ao estudo da mente humana em seus diversos aspectos. A maior parte do tempo dediquei à memória em suas várias formas e fases. Mas, para isso, tive que me aprofundar também em outras questões, como os sentimentos, os estados de ânimo e as emoções, seus efeitos no sistema nervoso central, as respostas deste, e os mecanismos que regulam a sua percepção. Como sabemos desde há muitos anos, os sentimentos, as emoções e os estados de ânimo têm uma imensa influência sobre a memória, em muitos casos já bem delimitada e biologicamente previsível. As vias nervosas que registram e regulam os sentimentos, as emoções e os estados de ânimo atuam modulando, através de receptores, cadeias de enzimas específicas em várias regiões corticais, entre elas o hipocampo e demais áreas vinculadas à memória, bem como outras áreas relacionadas à percepção e controle das variáveis psicológicas mencionadas, como o grau de alerta, a ansiedade e o estresse. Tratam-se das vias dopaminérgicas, noradrenérgicas e serotoninérgicas que regulam a percepção de, e as respostas à, a atenção, a ansiedade, o estresse, a excitação e a depressão. A regulação da atividade dessas vias através de remédios usados no tratamento da depressão ou da ansiedade se associa às mudanças cognitivas na percepção, formação e evocação das memórias mais variadas.
Também tive que me debruçar sobre formas da Psicologia que limitam a Filosofia, como a Psicanálise nas suas diferentes expressões; a que achei mais próxima aos conhecimentos biológicos atuais é a Freudiana, a primigênia. Não é a toa que Freud previu, inúmeras vezes, que algum dia seus conceitos e entelequias seriam explicados pela biologia e substituídos por idéias claras de funções nervosas, em alguns casos até com localização anatômica bem determinada. Freud tinha uma sólida formação neurobiológica e publicou vários trabalhos nessa área, inclusive um estudo pioneiro para a sua época sobre os efeitos da cocaína. Em épocas mais recentes, a denominada psicologia cognitiva se desenvolveu imensamente, passou a ser muito usada na terapia contra a depressão, com sucesso, e tem correlatos biológicos muito claros.
Li do que foi escrito sobre a consciência, a natureza dos sonhos, as coisas que foram famosas e já não existem mais. Entre elas o fenômeno do “déjà vu”, visto como uma das formas de epilepsia há até uns 30 anos. Ou as disputas sobre a “localização” do inconsciente, tido como um objeto anatômico, um substantivo, e não como um adjetivo; importante, mas adjetivo enfim. Os sonhos consistem em memórias evocadas internamente, misturadas de uma forma diferente da utilizada na vigília, e não expressadas para o exterior através de comportamentos. A consciência é ainda indefinível em termos rigorosos, e muitos acreditam que sob esse nome escondem-se muitas coisas, entre elas as memórias, níveis de atenção e outras atividades, propriedades e características do tecido nervoso. Hoje, nós que estudamos as Neurociências e vemos através desse estudo o quanto avançamos e o quanto ainda ignoramos sobre a mente humana, nos surpreendemos que poucos anos atrás pudessem ter existido idéias tão fantasmagóricas sobre ela.
Por exemplo, até pouco tempo atrás, confundia-se a mente com a alma. A alma é uma entidade abstrata que o corpo e a mente usam para comunicar-se com Deus; a palavra carece de significado entre os ateus. Acreditem ou não em Deus, os humanos podem ter mentes alertas ou opacas, e até brilhantes, como a de John Nash. Ou mentes doentes, como a do próprio John Nash. Um esquizofrênico, uma vítima de estresse pós-traumático ou um indivíduo deprimido têm a mente doente; mas a sua alma permanece intacta, já que é necessária a postulação de um Deus para se entender a palavra alma, mas não para reconhecer uma doença mental. Cristãos, judeus e muçulmanos acreditam que um doente mental possa ir ao Céu. Os que acreditam na transmigração das almas, como os budistas, os hinduístas e os espíritas, nem sequer cogitam a transmigração das mentes; um recém-nascido (ou um animal) não tem literalmente onde albergar a mente de um adulto.
Não se trata a alma com meios terapêuticos, mas sim a mente, através de remédios antidepressivos, antipsicóticos ou ansiolíticos, e de diferentes tipos de psicoterapia. As funções mentais podem referir-se a localizações anatômicas mais ou menos específicas: fazer, lembrar e extinguir memórias é função importante do hipocampo. A mente é função do corpo e dele depende para existir, sofrer e se manifestar. A alma certamente não tem localização corporal. Os que nela acreditam pensam que aparece e desaparece com o corpo; ou seja, surge com a concepção e evapora-se deste mundo com a morte. A mente não existe após a concepção e muitas vezes desaparece muito antes da morte (aqueles infelizes mantidos vivos como vegetais através de aparelhos, por exemplo).
O conceito de espírito superpõe-se bastante ao da alma; porém, também é muitas vezes aplicado a algo abstrato (vida espiritual, espírito empreendedor, espírito de luta) que difere tanto da alma como da mente. Também não há uma localização cerebral ou corpórea do espírito.
Personalidade, temperamento e inteligência são outras entidades abstratas cujas definições variam de acordo com o autor que as usa. Para alguns psiquiatras, são atributos ou conseqüências da mente; para muitos psicólogos ou pedagogos são características do indivíduo. As duas definições são usadas muitas vezes em conjunto, superpostas. Há quem ache que é difícil ou impossível definir o que é a inteligência, por exemplo.

A memória e a mente.

Certamente a mente humana ou animal depende em grande parte da memória. O pensador italiano Norberto Bobbio, falecido neste ano, dizia que “somos aquilo que lembramos”. Eu costumo acrescentar “e também somos o que decidimos esquecer”. De acordo com nossos hábitos e personalidade, podemos escolher não esquecer as ofensas e as agressões jamais, e nesse caso estaremos propensos à amargura, à paranóia ou ao ressentimento. Podemos escolher esquecê-las por completo, ou reprimi-las até que desapareçam do nosso acervo de memórias importantes, e nesse caso ficaremos muitas vezes indefesos perante a sua reiteração. Podemos também, entretanto, escolher reprimi-las ou extingui-las até que passem a ficar fora do acervo das memórias de uso diário e facilmente acessíveis, mas à nossa disposição caso se tornem necessárias; por exemplo, quando for oportuno esquivar-nos ou defender-nos de novas ofensas ou agressões.
Nossa mente possui os mecanismos para escolher entre essas possíveis soluções. O uso repetido de uma ou outra delas nos leva por rumos diferentes em relação à nossa personalidade; e a personalidade não é algo que se obtém como um diploma em uma certa idade: podemos mudá-la ao longo da vida, como produto das memórias deixadas pelas experiências. O mundo está cheio de pessoas que já foram “boazinhas” e, como conseqüência de uma guerra, uma humilhação ou um infortúnio, se tornaram ressentidas e perigosas. E também de outras que já foram ressentidas e amarguradas e depois de um sucesso, um golpe de sorte, o amor de alguém, o amor de muitos, a realização pessoal, ou qualquer outro motivo (a velhice, por exemplo, se for benigna) tornam-se tolerantes, benevolentes e de trato agradável e frutífero. As mudanças de personalidade pelo conjunto de experiências que temos são muitas vezes inconscientes e até involuntárias; outras vezes são conscientes e produto de nosso julgamento sobre o que é que mais nos convém na sociedade em que vivemos, e de nossa análise cuidadosa das características dessa sociedade. Falei linhas acima da “mente humana ou animal”. É fácil verificar mudanças de temperamento em cachorros ou outros animais de estimação ou de laboratório submetidos a experiências da índole assinalada no parágrafo anterior. Não é por casualidade nem por erros inatos da carga genética que há cachorros que jamais mordem a mão de quem lhes dá comida, e outros que sempre o fazem. Os animais também são aquilo que lembram e aquilo que escolhem esquecer.

As emoções, a mente humana e a memória

É bem presente que, a todo momento de nossa vida, a cada minuto, estamos com algum estado de ânimo ou emocional determinado, e em determinado estado sentimental; e que ambos são facilmente mutáveis. Os estados de ânimo, as mudanças de humor e os estados sentimentais causam e são regulados por vias cerebrais muito bem definidas, que usam como neurotransmissores a noradrenalina, a dopamina, a serotonina e a acetilcolina, cada uma delas atuando sobre receptores bem diferentes espalhados por todo o cérebro. Alguns desses estados favorecem a aquisição, consolidação ou evocação dos mais diversos tipos de memória, por ação das substâncias mencionadas sobre um ou outro receptor nas regiões cerebrais que fazem ou evocam memórias. Às vezes, podem afetar de forma oposta a formação das memórias de curta e longa durações; às vezes, pelo contrário, afetam esses dois tipos de memória no mesmo sentido; às vezes, o efeito de alguma dessas vias predomina sobre o das outras; às vezes, essas vias agem simultaneamente com intensidade semelhante.As memórias muito aversivas ou emocionantes têm sua aquisição, e sua subseqüente consolidação, regulada preferencialmente pelas vias noradrenérgicas centrais, que fomentam sua gravação e portanto, indiretamente, sua permanência. Todos lembramos onde estávamos e o que estávamos fazendo quando vimos na televisão a morte de Ayrton Senna. Muitos recordaremos vivamente, anos depois, algum acontecimento feliz de nossa vida, por exemplo um determinado aniversário, ou o casamento, ou o nascimento dos filhos ou netos. A fidelidade da gravação e sua persistência são notoriamente menores quando se tratam de memórias menos importantes ou chamativas. Na hora da evocação, se produzirá um nível emocional maior (com maior descarga central de noradrenalina) ao evocar aquelas memórias mais “emocionantes” do que outras. De fato, as vias noradrenérgicas, dopaminérgicas e serotoninérgicas são também cruciais e participam como protagonistas importantes na evocação da memória, também nas várias regiões corticais vinculadas à memória.
Além dessas vias, há hormônios liberados no sangue pela hipófise, supra-renal e outras glândulas que afetam profundamente a formação e a evocação de memórias, e muitas vezes acrescentam seu efeito aos aspectos cognitivos de cada memória, tornando-as dependentes deles. A memória passa, assim, a ser “a informação aprendida” mais “o efeito do hormônio que for liberado durante a experiência correspondente”. A liberação do hormônio passa a funcionar como mais um componente da memória, como mais um estímulo condicionado para colocá-lo em termos pavlovianos. É mais fácil evocar essa memória quando estivermos novamente sob o efeito desse hormônio (por exemplo, para experiências muito novidosas a b -endorfina; para experiências muito estressantes, a adrenalina e a adrenocorticotrofina ou ACTH). Denomina-se isto como “dependência de estado”, e é comum justamente em experiências estressantes. O estado é aquele em que nos coloca a substância endógena liberada. Recordaremos mais das memórias de medo quando formos submetidos a novas situações de medo; recordaremos mais das memórias de conteúdo sexual quando estivermos em situações em que a nossa sexualidade for estimulada. Isso se deve ao fator de que em cada caso secretamos diferentes e específicos tipos de hormônio.

A mente humana.

A mente humana abrange, porém, muito mais do que a memória. Nas funções mentais participam a percepção, o nível de alerta, a seleção do que queremos perceber, recordar ou aprender, a decisão sobre o que queremos fazer ou deixar de fazer, a vontade, a compreensão, os sentimentos, as emoções, os estados de ânimo e tudo aquilo que é englobado sob os conceitos de inteligência e consciência.
Todas estas variáveis são fortemente influenciadas pelas memórias e vice-versa; mas são entidades separadas da mesma e com mecanismos próprios. Em termos de áreas cerebrais há alguma especialização, mas também muitas superposições. O hipocampo, estrutura do lobo temporal, e o córtex subjacente (entorrinal) estão fortemente vinculados com a formação e a evocação de memórias. Mas também registram os níveis de alerta e as emoções, que regulam sua função mnemônica. A amígdala modula e regula o desempenho hipocampal nas memórias aversivas ou muito alertantes; mas, além disso, ambas estruturas, amígdala e hipocampo, regulam a secreção de hormônios hipofisários, que por sua vez também regulam a secreção hormonal das glândulas supra-renais, tireóide, e sexuais.Como resultado do registro de variáveis internas ou externas que aumentam ou diminuem os níveis de alerta e atenção e causam ou não ansiedade ou estresse, ocorrem mudanças somáticas (no corpo) que nem sempre se relacionam com a memória: hiperventilação, taquicardia, aumento da pressão arterial, dos movimentos e secreções do tubo gastro-intestinal, secreção de bílis, etc. É claro que todos estes fenômenos por sua vez afetam a curto e a longo prazo a atividade nervosa e, dentro dela, as funções mentais, inclusive as referentes à memória. Há uma relação mente/corpo que é a base da atividade cotidiana de ambos, e também da patologia chamada psicossomática; que não só existe, como é uma das bases da Psiquiatria e da Medicina modernas. O estresse repetido pode alterar alguns dos parâmetros fisiológicos mencionados (pressão arterial, freqüência cardíaca, secreção gástrica) de forma permanente.
Assim, a mente humana abrange muitos aspectos e não é possível estudá-la nem entendê-la, ainda que num nível elementar, sem levar em consideração todos esses aspectos. A mente influi sobre o corpo, o corpo influi sobre a mente, e nem um nem outro tem a ver com a alma ou o espírito.
Sabemos muitas coisas novas e importantes sobre alguns aspectos da mente humana e sua patologia, principalmente sobre a percepção e a memória. Também sabemos como tratar essa patologia muito melhor do que dez ou cinqüenta anos atrás. Mas ainda há muito mais por aprender.
A mente é, hoje, até fácil de descrever em seus aspectos mais gerais, mas a função mental em cada circunstância específica de nossas vidas continua sendo um mistério . Como prever, frente a uma determinada circunstância, se haverá algum cruzamento remoto de informações que nos fará reagir de alguma maneira? Somos surpreendentes, e nisso radica nossa variedade como indivíduos, e também algumas das nossas semelhanças.