16.3.21

OLVIDOS OUVIDOS



 

  Olvidos ouvidos 

      Ouvindo os pássaros sendo seus sons, pode-se refletir sobre essas orelhas brotando no sopé de uma figueira centenária, na praça São José, de Botucatu, meados de março de 2021.

    Brotam da terra enraizada ouvidos para lembrar nossos olvidos. É mistério em folhas discretas no primeiro aniversário da pandemia COVID-19.

    Elas desfolham o mistério que deixamos de celebrar: que força é essa a mobilizar o cosmos para a apreciação do cosmos? Para onde esquecemos em ir, onde não podemos sequer admirar, dispensando a soberba, o estupendo que  já somos?

    E o que escutam tais ouvidos da terra de uma cidade média brasileira, no novo auge da contaminação e mortes pelo vírus?

    Talvez que olvidamos de cuidar de nossos ouvidos, de nossa ignorância torpe e transmitida pelos veios de nossa árvore genealógica? Que estamos vacilando de tratar nossas feridas e propagamos o fio de sofrimento em julgamentos impróprios a prosperar a devassa humana?

    Tais orelhas cochicham para admirarmos e validarmos os tantos erros cometidos? Vociferam em silêncio germinativo para expandirmos nossa consciência de que brotamos de tudo que há e somos na conexão com tudo? 

    Ou re-lembramos (sati = mindfulness)  e reorientamos ou perecemos.

    Seremos, assim, surdos ou videntes.

    Mas como pausar essa civilização e sua parafernália de próteses de satisfação fugaz? Como pausar e podermos contemplar o que já é?

   Orelhas olvidadas vicejam e olvidos ouvidos prosperem, quem sabe. 

                       por Felipe Modenese

                            16-03-2021




    


 

    

 

16.6.20

Resiliens

por Felipe Modenese

I
Temos as estrelas como forjas!
Seus núcleos absurdos fazem nossa matéria!
Que melhor tempo que o agora 
Para lembrar nosso bilhões de anos moleculares
Presentes em cada passo inacreditável?
Vivemos o absurdo, sim. 
Não poderia ser diferente: somos o absurdo de seres 
Contemplando a magnitude impossível do universo. 




II
Temos as formações planetárias como forjas!
Vulcões, terremotos e a alquimia destrutiva 
Permeiam nossas entranhas celulares.
Deslizes massivos, corrosão e a aleatoriedade 
Da sutileza fazem nossa integridade.
Que melhor tempo que o agora?
Somos os cataclismos realizados,
Ecoando e pulsantes nos nossos sofás. 
Encorpados nos dedos frenéticos aos celulares, 
Estão tantos colapsos colossais e rupturas hediondas 
Da composição de nossa Terra.

Despertemos!
Da hipocrisia,
Da inconsciência de nossa resiliência
Frente à matriz de destruição e criação 
Da realidade que nos faz. 




III
Temos predadores, fobias e coragem como forjas!
A sabedoria e a destreza, 
Perante os crivos dos massacres, vivem em nós. 
Somos, sim, lapidados por fendas na evolução biológica, 
Pelas lâminas de desafios sobre e interpostas. 
Que melhor tempo que o agora
Para lembrar que realizamos, em corpo e espírito, 
A mortalidade das presas do T.rex
E o mágico voo estático dos beja-flores?
Encarnamos a herança da hibernação
E a hecatombe das metamorfoses. 
Em nosso alforge hereditário 
Descansa uma resiliência samurai, 
Esculpida pelas eras de um tempo 
Inagarravel pela razão torpe. 




IV
Temos a selva e o fogo como forjas!
Dispomos da penetrância da lança,
Da genialidade da alavanca.
Conosco é a maleabilidade dos metais 
E a mortalidade das armas.
Que melhor tempo que o agora
Para viver a realidade dos traumas 
Em perfusão na civilização?
Massacres, escravidão, Auschwitz, Jesus
E toda a pirofagia existencial da cultura nos sustentam 
Atravessando as digitais nos volantes dos carros.
Estes são acordes da sinfonia histórica 
E os passos de nossa dança inimaginável.

Já são 3 meses de ameaças virais, 
Pandemia e isolamento social.
Como fica a dimensão desse tempo 
Perante a resiliência colossal 
Da realidade existente em cada um de nós?

Os números (e a estupidez do governo) assombram sim!
As mortes de coronavírus são mais de 40 mil, 
Deixando marcas e lapsos sem velórios. 
Ficamos recolhidos e destroçados, mais um vez:
Um golpe seco e duro para a forja e o despertar 
De nossa resiliência inacreditável. 


3.2.20

Horas são

Horas são 

No corpo do pai,
bem longe do filho,
sente espírito tanto
os tapas na cara da alma.

A peleja humana vigora
o planeta azul;
detona o verde
(des)fazendo a sombra de sua natureza.

Vamos sem sentido, ao descalabro:
só; vamos.

Com que arrogância prosperamos
no desterro
da ascendência
de nosso chão? 

Com que fundura 
pais desconhecem
a prontidão da neurobiologia interpessoal dos filhos?
Enterram buracos 
a ecoar por gerações?

O vazio é vasos, 
desabrochando exóticas orquídeas,
ora louco,
ora são.

Do ventre da (H)era digital,
pululam pop ups:
pólen-dúvidas,
clamor de sabedoria,
brados de austeridade 
em súplicas de presença.  

Onde se hiberna a compaixão?
Por onde vaga a alegria livre de consumo?
Em que oração emerge o altruísmo nutritivo?

Na matéria do espírito, 
repetimos os exames,
o sacramento do nada 
em busca de forma 
e qualquer a-b-sol-vi-ção
do espírito da matéria. 

Nestas horas, são,
ridicularizo o que sou,
encarno o que é, 
cravando linguagem 
na cruz deste momento. 

No corpo do pai,
bem longe do filho,
o espírito sente tanto
tapas firmes na cara 
para despertar amor puro 
em pleno desastre
dessa(s) horas são. 
Árvore centenária derrubada "naturalmente" na fazenda Nova Era (Botucatu-SP, foto 14/07/2019)




23.3.19

(Um peixe) penso, logo sou


No saguão da pousada onde estou estes dias, há um peixe penso. Ele não permanece, nem se movimenta em sua posição “ereta”, com seu eixo de simetria alinhado com a vertical. Está torto, inclinado, penso.
O que acontece é que o nível da água é pouco para seu tamanho atual. A lâmina de seu ambiente ficou estreita para conter seu porte na dimensão vertical, de modo que sua nadadeira dorsal sai para o ar quando ele “entra no prumo”.  Talvez isso ative seu sistema de proteção, pois parte de si está fora de seu local natural, e resguarde sua integridade inclinando-se para ficar contido no espaço (aquático) que lhe cabe.
É inquietando notar sua adaptação ao que lhe cabe neste momento, modificando seu movimento natural, sua atitude normal. A sensibilidade da nadadeira requer imersão. O peixe, o mínimo de proteção no conteúdo de um volume com 20 cm de altura no saguão de uma pousada em Bertioga.
O aquário é para peixes que não crescem tanto. O lugar não lhe cabe mais, e sua sabedoria evolutiva lhe incita mudança.
Estou nesta pousada por uns dias para trazer meu pai numa das praias com melhores condições de acessibilidade (para pessoas com dificuldades de movimento) no país, segundo alguns rankings. Em setembro de 2016, ele sofreu um AVC hemorrágico, deixando be comprometida sua destreza motora do lado esquerdo do corpo.
O alinhamento corporal se perdeu, desgarrou de uma organização consolidada para a marcha ereta. O equilíbrio na verticalidade autônoma esvaiu-se com o banho de sangue em poucos centímetros cúbicos na região parietal do hemisfério cerebral direito.
Meu pai, um neurocirurgião preparado para muitas catástrofes totais, não corta mais seu bife sozinho nas refeições. Perdeu seu prumo e é (de)pendente para quase tudo em seus deslocamentos no espaço e modificou drasticamente sua relação com o tempo... Enfrenta, penso, com bravura sua (de)pendência.
Aceita o convite para Bertioga, numa pousada na praia de Indaiá, onde é disponível uma cadeira anfíbia para conseguir entrar no mar. Viemos banhar a borda do oceano, até que enfim, com seu corpo torto. Vem sentir na pele o infindável mistério do fluxo da vida, podendo pairar boiando em destemor perante o inalienável da vida exigente.
Para tanto, é preciso aceitar ajuda. Para tamanha ousadia, é necessário se entregar à nova condição de (de)pender.
No começo as entradas no mar são um pouco estressantes. Na medida de algum sucesso, ao longo dos dias, meu pai começa a se soltar mais e apreciar, ganha pitadas de ânimo para se contemplar capaz de recomeços contínuos, momento a momento, na frescura do tempo de Bertioga.
                Enquanto isso, na pousada o peixe penso não encolherá. Também não contará com mais água, uma vez que o aquário já está no nível máximo. Ele se inclina à espera da liberdade oceânica de seu rio? No aguardo do gesto humano para o espaço digno e próprio?
                Parece que vive o que é e como não deve ser. Paira em sua nova restrição, sendo como pode ser. Entre estar no prumo ou inclinado para manter o dorso submerso, seu ser pende por não caber no mesmo espaço, na mesma condição, no mesmo ser de antes. É importante a expansão, mudar, pois sua natureza assim impõe pela força de uma angulação de seu eixo.
                Em crescer, sua (de)pendência aumentará até a diagonal ou até virar um peixe de lado, deitado no fundo do aquário. Está (de)pendente para um novo espaço, para a compreensão de uma ajuda na mudança de lugar onde será o que já é e agora não pode ser.
                O dono da pousada, questionado sobre a situação, sintetiza que ele cresceu muito e que ainda pode subir o nível da água alguns milímetros. Logo volta para suas ocupações. Não se alarma: inconsciente? ignorante da chance de amar na condição própria ao peixe penso? resistente a soluções necessárias? apegado? apoiado ali? penso?
                Meu pai aceita o convite e a ajuda para ser ao mar, reconhecendo-se maior na pele do oceano, confiando e apoiando-se para viver a amplitude oceânica que ele já é, mas não pode ser. Para viver sua nova condição de forma integral, é preciso contar com apoios, é preciso confiar e se entregar ao que de fato nunca deixou se ser: nossa dependência de tudo, nossa pendência a tudo que existe e nos suporta.
                É necessário realizar que somos, cada um, pendentes e interdependentes. Assim podemos ter a chance de ser algo bem maior do que a ilusão que temos vivido, algo imensurável, que só cabe dentro das bordas do amor.
                Enquanto isso, eu um peixe penso, logo sou. 

14.6.18

9 sóis a João

              
              9 sóis a João 
Filho João, o nascer do sol 9 brota a saudade em soluços. Choro a beleza de viver na sua ausência, que se finda. As bochechas sentem aguadas o frio de fim de maio, encobertas por uma pele de lágrimas puras, destiladas na presença de sua falta por 90 dias. As mãos vivem o frio ao registrar estas palavras do nascer do 9° sol, da cruz detrás do morro do Peru. Sinto e choro o belo.
O espetáculo de viver o colorir de tudo entorpece pelo infindável ao alcance dos olhos. Vislumbro sua chegada no desembarque. Seu surgir deixa tudo mais nobre, digno de ser vivido. Adianto aqui as lagrimas que virão, no soluço repercutido das vísceras.
9 é um sol que solta o rabo na terra. Toca o horizonte por um outro pedaço de círculo, maior, mostrando a coragem de existir só. É preciso viver bem só. Para tocar melhor o que não sou, o que é distinto de mim. Para reconhecer o que também não sou. O disco completo e o segmento de círculo maior encontram um caminho de viver. A vida segue. É o seu segmento.
Fazer parte de algo maior deixa ser maior.
9 também é círculo desenrolando do chão. É broto a enfrentar o futuro. É a terra que se lança no cosmos, amparada. Por enquanto. Acaso desafiando o ocaso. É vida pura, teimosa, criativa e disponível. Não deixa de ser unidade lançada do todo para contemplar o que há a vir.
Não cabe o pronome em “filho João”. Você não é meu. É de tudo. É tudo e não caba na posse. Desejo ajudar você a ser livre, do seu tamanho. Viver uma plena vida, cheia do bom, do mal, seus interstícios e descaminhos. Uma vida humana digna e espelho da beleza de tudo. Quero também estar na sua unidade, por onde estiver. Quero sermos círculo e também segmento. Quero ajudar seu pleno viver autônomo, seu colorir do mundo. Desejo que você seja. E isso é tudo.      
O sol 9 já tinha nascido um tanto quando me dei conta. Chegou miúdo, e agora já seca o sereno das flores da grama onde sento. Aparece sem preparo, mesmo após alguns nasceres esperados nos últimos 3 meses. Não há preparo para o inesperado. Há o preparo para o acolher o que vier, mesmo que seja a catástrofe. E principalmente se assim o for, pois não se pode sair do contínuo transformar. Somos impermanência.
Sua chegada é para sempre, como este nascer do sol 9 na cuesta de Botucatu, neste dia 24 de maio de 2018. Com ele vivo seu retorno próximo, em lágrimas e palavras fugazes, e para (um tanto bom desse) sempre.
Chega filho João. Desembarca. Há suficiente viver. Seja o que houve. Seja o que houver.
Seja o que há.
Há o ser.
Há.

12.4.18

Passagem

“Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...” (J. G. Rosa)  

Passagem.
Um mar vermelho.
Recomeçar a vida depois de um derrame é travessia e tanto. Há pouco mais de um ano e meio, em setembro de 2016, ele começa a enfrentar a sobrevida e o descontrole da motricidade decorrente de um AVC hemorrágico.
Desde então, e após 15 dias na ótima UTI de AVC da Faculdade de Medicina de Botucatu, reabilita-se à vida. Depois do vazamento de alguns mililitros de sangue que comprometem definitivamente parte do tecido neuronal no seu hemisfério cerebral direito.  O acidente vascular afasta dele a autonomia de andar, comer, levantar da cama e beber um copo de água, urinar ou tomar banho sozinho. Talvez o impedimento maior seja não poder brincar com os netos livremente.
Vive quão vasto pode ser o mar.
Vermelho. Definitivo.
Vive quão profundo é o estrago de alguns mililitros de sangue vazados.    
Um hematoma cerebral moderado é abissal para muitos. É instransponível para cerca de 80% das vítimas. É percurso truncado e relativamente comum. Aqui, além disso, há uma peculiar ironia do destino: Eduardo Modenese é um neurologista clínico e cirurgião.
Médico.
Por quase 50 anos de prática médica, desde sua formatura na segunda turma da FMB, dedica-se a cuidar das doenças neurológicas de outros. Tantos acidentes (inclusive os vasculares), atendimentos de emergências, incluídos os das madrugadas e fins de semana, tantas horas em mesas cirúrgicas e consultas, tanta busca por eficientes recursos para o tratamento, tantos pacientes que ficam ilhados em sua condição ou se vão de vez, além da intervenção humana. Outros, mais numerosos, viveram ou estão vivendo sua vida, reintegrados ao tecido social na medida do seu possível.
Aos 72 anos, enfrenta-se! Seu caso mais desafiador! Não há cirurgias ou medicamentos. Não há retornos... Nem retorno! Depara-se, sim, com o permanente viver da derrocada da autonomia. Há o continuo imiscuir-se na desobediência do corpo, frustrando-se na lentidão teimosa da neuroplasticidade.
Paciente.         
Em sua jornada, depara-se consigo em derrame. Derramado, em diagonal, na madrugada do sofá da sala, sem conseguir qualquer controle do lado esquerdo do corpo. Uma fenda se inunda entre vida e sobrevida.  E não pode curar-se milagrosamente, num átimo. É preciso viver a perda de si, vasculhar e desterrar os recursos para se encontrar. Ilhado no enigma, isola-se, vive a vertigem absurda de não poder se sanar, a não ser pelos passos curtos e sôfregos de uma longa passagem. A não ser pela conquista milimétrica perante a ruina da destreza.
Os movimentos finos da mão esquerda se afogam. O derrame asfixia a meticulosidade essencial das cirurgias em campos sutis do sistema nervoso. Agora, a debilidade ensina. O controle é grosseiro. A mão não obedece a vontade de firmar o garfo para o corte de uma carne que seja. Não pode, ainda hoje, empunhar à esquerda um copo e beber. O sutil se reverte em tosco. A intensidade da emergência se dissolve em paciência, em perseverança na reconquista de habilidades. 
A marcha fluida através da rotina, por tanto tempo frenética para a ação urgente, se esvai. Andar deixou de ser óbvio para ser uma jornada de tantos passos. Ao longo dos meses de fisioterapia e outras tantas atividades de reabilitação, engendra-se ao corpo uma nova dinâmica. Conquista, aos poucos, nova forma de caminhar pelo corredor da casa. Eduardo vem reaprendendo a equilibrar-se na existência. Teima. Reconfigura seu caminho, com a ajuda da esposa, família e bons profissionais, para achar seu novo rumo em cada passo até um novo si.
Atravessando.
Resiliente.
Lavrando confiança em novo lugar, em meio ao desterro de si.
Enquanto a motricidade se habilita de nova maneira, a cognição esteve intacta. Pelo bem e pelo mal... Memória, linguagem e pensamento estão ilesos desde o AVC. A consciência dessa travessia esteve resguardada. E a riqueza que daí emerge é diferencial. A todos que se dispõem a enfrentar algo assim, e especialmente a um neurologista. 
Aos poucos, revigora-se em crer que pode ajudar, e começa a retomar atendimentos no consultório. Esculpe na esperança, entremeada nos veios da paciência, uma barca para se descobrir. Navega perseverante (e não sem titubeios) pela inundação de alguns milímetros de sangue vazados e fatais a tecidos do cérebro.
Espera que possa ajudar alguns pacientes. Talvez possa contribuir não só com o conhecimento médico acumulado, mas também com a expertise sôfrega e penosa de ser um paciente, substantivo e adjetivo.
Médico e paciente estranham-se nessa passagem.
Encontram-se na catástrofe.
Derramam-se.
Confundem-se em outro homem.
Digno.
Entranham-se para fazer terceira margem.
Travessia.      






2.8.11

O relógio




por Ana Martins Marques 


De que nos serviria um relógio?

se lavamos as roupas brancas: 
é dia                               
as roupas escuras:
é noite

se partes com a faca uma laranja em duas:
dia
se abres com os dedos um figo maduro:
noite
se derramamos água:       
dia
se entornamos vinho:                                                        
noite

quando ouvimos o alarme da torradeira ou a chaleira como um pequeno animal que tentasse cantar:
dia
quando abrimos certos livros lentos e os mantemos acesos à custa de álcool, cigarros, silêncio:
noite
se adoçamos o chá:
dia
se não o adoçamos:
noite








se varremos a casa ou a enceramos:


dia
se nela passamos panos úmidos:
noite

se temos enxaquecas, eczemas, alergias:
dia
se temos febre, cólicas, inflamações:
noite

aspirinas, raio-x, exame de urina:
dia
ataduras, compressas, unguentos:
noite

se esquento em banho-maria o mel que cristalizou ou uso limões para limpar os vidros:
dia
se depois de comer maçãs guardo por capricho o papel roxo escuro:
noite
se bato claras em neve: 
dia
se cozinho beterrabas grandes:
noite

se escrevemos a lápis em papel pautado:
dia
se dobramos as folhas ou as amassamos:
noite
(extensões e cimos:
dia
camadas e dobras:
noite)

se esqueces no forno um bolo amarelo: 
dia
se deixas a água fervendo sozinha:
noite

se te cortas com papel ou feres o pé com vidro: 
dia
se ao comer com pressa queimas o céu da boca: 
noite
se pela janela o mar está quieto lerdo e engordurado como uma poça de óleo:
dia
se está raivoso espumando como um cachorro hidrófobo:
noite

se um pinguim chega a Ipanema e deitando-se na areia quente sente ferver seu coração gelado:
dia
se uma baleia encalha na maré baixa e morre pesada, escura, como numa ópera, cantando:
noite

se desabotoas lentamente tua camisa branca:
dia
se nos despimos com ânsia criando em torno de nós um ardente círculo de panos:
noite

se um besouro verde brilhante bate repetidamente contra o vidro: 
dia
se uma abelha ronda a sala desorientada pelo sexo: 
noite

de que nos serviria
um relógio?


16.5.11

Klee por Benjamin

 
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus.
Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado.
Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.
Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las.
Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.

Walter Benjamin
Tradução de Sergio Paulo Rouanet (in Obras Escolhidas, Brasiliense, 1994)

11.4.11

La noche de los feos (conto do uruguaio Mario Benedetti)

Estou feliz por reativar meu blog... parado a anos... E acho que é uma retomada em grande estilo, ainda mais em tempos de tanta beleza oca...

Desde que conheci alguns escritos do uruguaio Mario Benedetti, percebi que tal escritor dizia mais que muitos outros. O conto "La noche de los feos" particularmente me cutucou. Sua sensiblidade é uma benção, não?
Abaixo está o texto em espanhol (ainda não encontrei ele traduzido nem consegui traduzir para o português) e em seguida dois curta-metragens espanhóis do conto:
O primeiro é uma animação de Manuel González Muricio, de 2006, ganhador de alguns prêmios (Tatú de Ouro do Festival da Bahia, Festival Internacional de Las Palmas de Gran Canaria, e nomeação para o Goya 2007). Tem legenda em inglês...
E o segundo é uma encenação do conto, dirigida por Luisa Buitrago e produzido por Maria Alejandra Marulanda, com um diferença interessante: é narrado por ela... Este não tem legende, infelizmente.
1
Ambos somos feos. Ni siquiera vulgarmente feos. Ella tiene un pómulo hundido. Desde los ocho años, cuando le hicieron la operación. Mi asquerosa marca junto a la boca viene de una quemadura feroz, ocurrida a comienzos de mi adolescencia.

Tampoco puede decirse que tengamos ojos tiernos, esa suerte de faros de justificación por los que a veces los horribles consiguen arrimarse a la belleza. No, de ningún modo. Tanto los de ella como los míos son ojos de resentimiento, que sólo reflejan la poca o ninguna resignación con que enfrentamos nuestro infortunio. Quizá eso nos haya unido. Tal vez unido no sea la palabra más apropiada. Me refiero al odio implacable que cada uno de nosotros siente por su propio rostro.

Nos conocimos a la entrada del cine, haciendo cola para ver en la pantalla a dos hermosos cualesquiera. Allí fue donde por primera vez nos examinamos sin simpatía pero con oscura solidaridad; allí fue donde registramos, ya desde la primera ojeada, nuestras respectivas soledades. En la cola todos estaban de a dos, pero además eran auténticas parejas: esposos, novios, amantes, abuelitos, vaya uno a saber. Todos -de la mano o del brazo- tenían a alguien. Sólo ella y yo teníamos las manos sueltas y crispadas.

Nos miramos las respectivas fealdades con detenimiento, con insolencia, sin curiosidad. Recorrí la hendidura de su pómulo con la garantía de desparpajo que me otorgaba mi mejilla encogida. Ella no se sonrojó. Me gustó que fuera dura, que devolviera mi inspección con una ojeada minuciosa a la zona lisa, brillante, sin barba, de mi vieja quemadura.

Por fin entramos. Nos sentamos en filas distintas, pero contiguas. Ella no podía mirarme, pero yo, aun en la penumbra, podía distinguir su nuca de pelos rubios, su oreja fresca bien formada. Era la oreja de su lado normal.

Durante una hora y cuarenta minutos admiramos las respectivas bellezas del rudo héroe y la suave heroína. Por lo menos yo he sido siempre capaz de admirar lo lindo. Mi animadversión la reservo para mi rostro y a veces para Dios. También para el rostro de otros feos, de otros espantajos. Quizá debería sentir piedad, pero no puedo. La verdad es que son algo así como espejos. A veces me pregunto qué suerte habría corrido el mito si Narciso hubiera tenido un pómulo hundido, o el ácido le hubiera quemado la mejilla, o le faltara media nariz, o tuviera una costura en la frente.

La esperé a la salida. Caminé unos metros junto a ella, y luego le hablé. Cuando se detuvo y me miró, tuve la impresión de que vacilaba. La invité a que charláramos un rato en un café o una confitería. De pronto aceptó.

La confitería estaba llena, pero en ese momento se desocupó una mesa. A medida que pasábamos entre la gente, quedaban a nuestras espaldas las señas, los gestos de asombro. Mis antenas están particularmente adiestradas para captar esa curiosidad enfermiza, ese inconsciente sadismo de los que tienen un rostro corriente, milagrosamente simétrico. Pero esta vez ni siquiera era necesaria mi adiestrada intuición, ya que mis oídos alcanzaban para registrar murmullos, tosecitas, falsas carrasperas. Un rostro horrible y aislado tiene evidentemente su interés; pero dos fealdades juntas constituyen en sí mismas un espectáculos mayor, poco menos que coordinado; algo que se debe mirar en compañía, junto a uno (o una) de esos bien parecidos con quienes merece compartirse el mundo.

Nos sentamos, pedimos dos helados, y ella tuvo coraje (eso también me gustó) para sacar del bolso su espejito y arreglarse el pelo. Su lindo pelo.

"¿Qué está pensando?", pregunté.

Ella guardó el espejo y sonrió. El pozo de la mejilla cambió de forma.

"Un lugar común", dijo. "Tal para cual".

Hablamos largamente. A la hora y media hubo que pedir dos cafés para justificar la prolongada permanencia. De pronto me di cuenta de que tanto ella como yo estábamos hablando con una franqueza tan hiriente que amenazaba traspasar la sinceridad y convertirse en un casi equivalente de la hipocresía. Decidí tirarme a fondo.

"Usted se siente excluida del mundo, ¿verdad?"

"Sí", dijo, todavía mirándome.

"Usted admira a los hermosos, a los normales. Usted quisiera tener un rostro tan equilibrado como esa muchachita que está a su derecha, a pesar de que usted es inteligente, y ella, a juzgar por su risa, irremisiblemente estúpida."

"Sí."

Por primera vez no pudo sostener mi mirada.

"Yo también quisiera eso. Pero hay una posibilidad, ¿sabe?, de que usted y yo lleguemos a algo."

"¿Algo cómo qué?"

"Como querernos, caramba. O simplemente congeniar. Llámele como quiera, pero hay una posibilidad."

Ella frunció el ceño. No quería concebir esperanzas.

"Prométame no tomarme como un chiflado."
"Prometo."
"La posibilidad es meternos en la noche. En la noche íntegra. En lo oscuro total. ¿Me entiende?"
"No."
"¡Tiene que entenderme! Lo oscuro total. Donde usted no me vea, donde yo no la vea. Su cuerpo es lindo, ¿no lo sabía?"

Se sonrojó, y la hendidura de la mejilla se volvió súbitamente escarlata.

"Vivo solo, en un apartamento, y queda cerca."

Levantó la cabeza y ahora sí me miró preguntándome, averiguando sobre mí, tratando desesperadamente de llegar a un diagnóstico.

"Vamos", dijo.


2
No sólo apagué la luz sino que además corrí la doble cortina. A mi lado ella respiraba. Y no era una respiración afanosa. No quiso que la ayudara a desvestirse.

Yo no veía nada, nada. Pero igual pude darme cuenta de que ahora estaba inmóvil, a la espera. Estiré cautelosamente una mano, hasta hallar su pecho. Mi tacto me transmitió una versión estimulante, poderosa. Así vi su vientre, su sexo. Sus manos también me vieron.

En ese instante comprendí que debía arrancarme (y arrancarla) de aquella mentira que yo mismo había fabricado. O intentado fabricar. Fue como un relámpago. No éramos eso. No éramos eso.

Tuve que recurrir a todas mis reservas de coraje, pero lo hice. Mi mano ascendió lentamente hasta su rostro, encontró el surco de horror, y empezó una lenta, convincente y convencida caricia. En realidad mis dedos (al principio un poco temblorosos, luego progresivamente serenos) pasaron muchas veces sobre sus lágrimas.

Entonces, cuando yo menos lo esperaba, su mano también llegó a mi cara, y pasó y repasó el costurón y el pellejo liso, esa isla sin barba de mi marca siniestra.

Lloramos hasta el alba. Desgraciados, felices. Luego me levanté y descorrí la cortina doble.
FIN

Curta-metragem de animação "La noche de los feos"

Curta-metragem com encenação do conto (narrado por ela)



3.11.07

Esforço despropositado...




A Forma Justa


Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre.
A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse – proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino.
– Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso.
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é o meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo.


Sophia Mello Breyner Andresen


(em "O Nome das Coisas")

21.8.07

Pérolas

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(Anúncio do Espaço Cultural CPFL)
A Editora Verus e o Espaço Cultural CPFL convidam para o lançamento do livro A Pérola e a Ostra, da escritora e poeta Cássia Janeiro. O evento é precedido de debate, com presença do crítico literário Antonio Candido, que prefacia o livro, e do escritor e cronista Rubem Alves, que assina o texto de apresentação.
Foi num texto de Rubem Alves que Cássia Janeiro encontrou o aforismo que viria a inspirar seu livro: "Ostra feliz não faz pérola". Comenta ele: "A ostra, para fazer a pérola, tem de ser infeliz. É preciso que ela tenha, dentro de sua carne, algo que a corte, um grão de areia com arestas pontudas. Dói. A ostra faz a pérola para parar de sofrer. A Cássia leu a frase, reconheceu-se e a transformou num poema".

Experimentando com mesma intensidade o que chama "dor poética", fruto de uma existência que se torna premente expressar, e a dor patológica de alguém como ela, que sofre de transtorno bipolar e mononeuropatia múltipla, Cássia Janeiro encontra na produção poética uma forma de sublimar o sofrimento diário.

No mesmo texto de apresentação ao livro da poeta, segue Rubem Alves: "Quem só vê as presenças só vê a beleza redonda da pérola. Não vê a dor que a fez nascer. Acontece também com os poemas: a sua beleza não nos deixa ver que, além da poesia, existe a dor que a própria poesia não consegue dizer." E mais adiante: "Por que os poetas escrevem? Bernardo Soares diz que 'a arte é comunicar aos outros a nossa identidade íntima com eles'. Pois é para isto mesmo que escrevem os poetas – para a inefável experiência de saberem-se iguais a todo mundo. Poesia é uma solidão de onde brota a comunhão."

Nascida em São Paulo em 1964, filósofa de formação e especialista em antropologia social e cultural, Cássia Janeiro é doutoranda em literatura brasileira e autora de dois outros livros de poesia, Poemas de Janeiro (1999) e Tijolos de Veneza (2004), ambos também prefaciados por Candido.

Leia a seguir comentários do crítico literário sobre sua produção poética.

Poeta plenamente configurada

Fragmentos do prefácio de Antonio Candido

Na poesia sempre houve um elemento de manipulação e um elemento de vibração. Certos poetas tendem à manipulação técnica, enquanto outros se entregam à vibração emocional. Mais interessante é quando sabem misturar bem as duas coisas, a fim de conseguir um texto que exprima o seu ser e, ao mesmo tempo, seduza pela fatura.
(...)
Os poemas de Cássia Janeiro se equilibram bem entre a capacidade de compor e a capacidade de fazer sentir, porque a sua composição parece aderir ao fluxo da emoção, como se o verbo brotasse de uma fusão inextricável da vibração pessoal com o desejo de alcançar o outro por meio da linguagem ordenada.
(...)
Isso me atrai, porque prefiro poemas que, por assim dizer, me fazem companhia. Poemas aos quais posso recorrer quando preciso de compreensão e solidariedade. Graças à oferta comovedora que o poeta faz de si mesmo, eles ajudam a compreender melhor a mim, mas também o semelhante e o mundo.
(...)
A sua simplicidade depurada faz da composição poética uma filtragem, de tal modo que a sua densa emoção, a sua dolorosa experiência se torna patrimônio de muitos. Direta e penetrante, ela sabe ligar o pólo do eu ao pólo do outro e do mundo, porque, por mais forte que seja a sua mensagem carregada de paixão, freqüentemente de dor, há nela a forte vocação do diálogo, sem o qual o poeta não se configura. E quem escreve poemas como Cássia Janeiro é poeta plenamente configurado.
(...)


9.7.07

Oracao do Panico

I
Esta sensacao e passageira.
Nada de mal vai me acontecer.
Muitas pessoas tem os mesmos incomodos.
Isto nao pode evoluir para nada de fatal, muito menos loucura...
Quanto mais intensa, mais curta.
Sou uma pessoal normal que deve aceitar sua sensibilidade e encarar este sofrimento com humor.
'E algo passageiro a que quanto menos peso der, melhor, mais rapido vou retomar a vida.
Tenho uma vida inteira para construir... Agora estou mais fortalecido.
Tenho 'otimos amigos, uma familia maravilhosa, ideias construtoras e muito a oferecer ao mundo.
Comecemos agora.
Nao evitar pensamentos ruins, mas sim encara'-los e ridicuraliz'a-los.

II
Meus medos provem do conhecimento da possibilidade de se perder o controle: doencas, um pane nervoso, suicidio, homessexualismo, espeiritos maus, sanidade, nao saber se relacionar, errar frente ao outro, escolher...
Acho que comeco a entender isso tudo. Temo porque vivo estes descontroles.
Comeco a ignorar estes aspectos, aceitar minha sensibilidade, ver que ha ameacas quando me sinto indefeso, uma crianca.
O parto ja' ocorreu, passando por medos infantis e me fortalecendopara a vida e o conviver bem, com o outro, consigo mesmo, aceitando-se humano.

III
A dor foi aguda, mas acabou...
Ja' nasceu um novo ser humano, livre dos estigmas que lhe imputaram.
Chega de dor.
Este novo ser comeca a fazer novos vinculos com o mundo.
Nao deve esconder seu eu verdadeiro, e' altruista por natureza.
Quer o bem.
Em todos os momentos esta' se construindo como novo individuo.
O parto ja' ocorreu.
E' no simples e verdadeiro relacionar que estou me edificando...

26.6.07

Filme - "Eu, você e cada um que conhecemos"


Traduzido para "Eu, você e todos nós", o filme dirigido por uma das atrizes, Miranda July, me deixou surpreso... Há anos não assistia a um filme dos us tão sutil.
Mostra um mundo social que pode ser transpassado pelos verdadeiros sentimentos. Os personagens realmente fazem aquilo que querem fazer, têm profundidade e permitem envolvimento mesmo.
As sutilezas de nossos dias eclodem das trincas e se pode transcender o prosaico rumo ao essencialmente humano, os sentimentos...
Seja um amor virtual por uma criança, a disputa teen pelo melhor boquete, o desejo vergonhoso pelas adolescentes de saia, as expressões verdadeiras de uma artista, a criatividade numa conversa de um quarteirão, tudo é muito verdadeiro no filme.
Nem triste, ou repulsivo ou alegrinho. O sentimento humano ressoa e compõe um bela obra de arte. Efeitos ficariam banais diante de tanta beleza
Curti demais.

4.6.07

A poesia é um segredo dos deuses?

O seguinte artigo foi publicado na coluna de Antonio Cicero na Folha de São Paulo, sábado, 19 de maio e também em seu blog:
http://antoniocicero.blogspot.com/2007/05/poesia-um-segredo-dos-deuses.html

A poesia é um segredo dos deuses?

NUMA MESA-REDONDA de que participei recentemente, no encontro de escritores que tem lugar anualmente em Póvoa de Varzim, no norte de Portugal, o tema proposto para discussão foi: "A poesia é um segredo dos deuses".
A propósito desse assunto, lembro que João Cabral dividia os poetas entre aqueles que tinham a poesia espontaneamente, como presente dos deuses, e aqueles -entre os quais ele mesmo se situava- que a obtinham após uma elaboração demorada, como conquista humana.
Ora, o tema da nossa mesa havia sido proposto tanto para deixar à vontade os poetas do primeiro grupo, isto é, os que acreditam na inspiração, quanto para provocar os do segundo, isto é, os que não acreditam nela, de maneira que uns e outros se sentissem livres para expor as suas poéticas divergentes.
Quanto a mim, não sinto que caiba inteiramente em nenhum desses dois grupos. Certamente considero uma tolice pensar que a poesia seja pura inspiração, pura dádiva dos deuses; mas penso que há também um quê daquela violência que os gregos chamavam de "húbris", um quê de insolência e arrogância na tese de que ela seja o resultado plenamente consciente e calculado do trabalho.“Inspiração” é o nome que damos à contribuição indispensável do incalculável, do inconsciente, do acaso e mesmo do equívoco à elaboração do poema. Nenhum grande poeta -nem mesmo João Cabral- jamais pôde deixar de se fazer disponível e receptível à irrupção dessas gratas e imprevisíveis contribuições.
"A arte ama o acaso", diz Aristóteles, com razão, "e o acaso, a arte". E o acaso e a arte se encontram inextricavelmente entrelaçados na feitura do poema.
A tal ponto isso me parece verdade que não acho muita graça nas boutades segundo as quais a poesia seria 10% inspiração e 90% transpiração. Por quê? Porque elas sugerem a idéia comum e equivocada de que o poeta tem, em primeiro lugar, a inspiração, para depois ter o trabalho de desenvolvê-la e poli-la.
Ora, penso que é justamente durante o trabalho, na busca de alternativas ao imediato e fácil, ou na tentativa de solucionar problemas criados pelo desenvolvimento do próprio poema, que a inspiração é mais solicitada e bem-vinda; e, por sua vez, a incorporação do impremeditado ao poema exige sempre uma nova elaboração, de modo que jamais se pode saber ao certo quanto do resultado final se deve à inspiração ou ao trabalho.
O fato é que a mim são muito simpáticos os deuses que representam as fontes de inspiração dos poetas, como Apolo e as Musas. A estas, aliás, já dediquei, em gratidão, pelo menos um dos poemas que fiz. Entretanto, dado que também reconheço o papel indispensável do trabalho consciente na produção dos poemas, não acho correto dizer que a poesia seja um presente delas.
E, por duas razões, parece-me claro que a poesia não pode ser um segredo dos deuses.
A primeira é que a poesia é um fenômeno humano, demasiadamente humano. Longe de consistir numa atividade puramente racional, ela lida com o que é particular, finito, humano. Ela usa palavras particulares de línguas particulares, finitas, humanas. Ela lida com a morte, a paixão, a perda, a ilusão, a esperança, o medo, a imaginação, o cômico, o trágico etc., que são realidades particulares, finitas, humanas. E a própria beleza da poesia é encarnada, sensual, particular, finita, humana. Os deuses -imortais, olímpicos, abençoados, oniscientes- não entenderiam tais coisas ou as desprezariam, pois se encontram muito acima delas. Conhecendo a poesia, o ser humano conhece uma maravilha que nenhum deus é capaz de conhecer.
Ademais, a poesia não pode ser um segredo, nem dos deuses, nem dos homens, nem mesmo do ponto de vista lógico. Por quê? Porque um segredo é algo que, em princípio, poderia ser revelado. Por exemplo, a fórmula de uma bomba ou a receita de um doce podem ser segredos, porque podem, em princípio, ser revelados. Se alguém diz que sabe um segredo, mas que não seria capaz de revelá-lo de modo nenhum, essa pessoa está mentindo. Um segredo tem que ser conhecido ao menos por uma pessoa ou um deus. Ora, é possível fazer um bom poema, mas não é possível, nem em princípio, saber como deve ser um poema, para ser bom. Essa é, na verdade, uma das poucas certezas que um poeta pode ter: é absolutamente inconcebível que haja fórmulas, receitas ou segredos -divinos ou humanos- para a feitura de um bom poema. Logo, a poesia não é um segredo dos deuses.