28.2.05

Sharks and Men

Se os tubarões fossem homens

Bertold Brecht

'Se os tubarões fossem homens', perguntou ao senhor K. a filha de sua senhoria, 'eles seriam mais amáveis com os peixinhos?'
"Certamente, disse ele. Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos, com todo tipo de alimento, tanto animal quanto vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca e tomariam toda espécie de medidas sanitárias. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, lhe fariam imediatamente um curativo, para que não morresse antes do tempo.
Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres tem melhor sabor do que os tristes.
Naturalmente haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos tubarões.
Precisariam saber geografia, por exemplo, para localizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar.
O mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais belo e mais sublime do que um peixinho que se sacrifica contente, e que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam de sua felicidade futura. Os peixinhos saberiam que este futuro só estaria assegurado se estudassem docilmente.
Acima de tudo, os peixinhos deveriam voltar toda inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista, e avisar imediatamente os tubarões, se um deles mostrasse tais tendências.
Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os seus peixinhos, e lhes ensinariam que há uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões. Os peixinhos, iriam proclamar, são notoriamente mudos, mas silenciam em línguas diferentes, e por isso não podem se entender. Cada peixinho que na guerra matasse alguns outros, inimigos, que silenciam em outra língua, seria condecorado com uma pequena medalha de argaço e receberia um título de herói.
Se os tubarões fossem homens, naturalmente haveria também arte entre eles. Haveria belos quadros, representando os dentes dos tubarões em cores soberbas, e suas goelas como jardim que se brinca deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos nadando com entusiasmo para as gargantas dos tubarões, e a música seria tão bela, que seus acordes todos os peixinhos, como orquestra na frente, sonhando, embalados, nos pensamentos mais doces, se precipitariam nas gargantas dos tubarões.
Também não faltaria uma religião, se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa apenas na barriga dos tubarões.
Além disso se os tubarões fossem homens também acabaria a idéia de que os peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores poderiam inclusive comer os menores. Isso seria agradável para os tubarões, pois eles teriam com maior freqüência, bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores detentores de cargos, cuidariam da ordem entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, construtores de gaiolas, etc.
Em suma, se os tubarões fossem homens, haveria uma civilização no mar."

25.2.05

Revoadas

T

O tato tatiado de T
Tateia as viculosidades de minha alma
Escorrega por meus vícios com calma
E acolchoa dores cristalizadas na carne.

São toques serenos e cheios de emoção
Embevecido em admiração, adimiro tal beleza,
Estarreço-me diante da beleza de tua pureza
Agarro-me a seus lábios e percorro o coração.

Quando um certo ar lhe invde,
Suas pálpebras caem repetidas vezes
E suas narinas abrem-se numa dinâmica virginal
Tornando musa de pensamentos.

Lustros do paraíso cegam o futuro
E resplandecem o momento vivente,
Todas (mesmo poucas) as vezes em que, videntes,
Os brilhos de seu corpo e alma tocam meu escuro.

Uma esperança feliz recobre os contornos
E faz da terra céu ao tansmitir
Eternidade a este ente do amor,
A esta mulher que um bom homem nunca esqueçe.

T, tateie os frisos do monumento;
O monumento chamado momento,
Apenas por nós reconhecido.
Somos nada sem este
Como o sou na ausência de pensamento,
Fraco na ausência do visco de seus olhos,
O riso aberto em sua face,
O toque angelical da sua pele,
E o beijo epifânico da linha de sua boca.

BIU
07/01/2005

24.2.05

Sobre goiabas e tartarugas

Música: O Rancho da Goiabada
Autores: João Bosco & Aldir Blanc

Os bóias-frias
quando tomam umas birita
espantando a tristeza,
sonham com bife-a-cavalo,
batata-frita e a sobremesa
é goiabada-cascão com muito queijo,
depois café, cigarro e um beijo
de uma mulata chamada Leonor
ou Dagmar.
Amar
o rádio-de-pilha,
o fogão-jacaré, a marmita,
o domingo, o bar,
onde tantos iguais se reúnem
contando mentiras
pra poder suportar...
ai, são pais-de-santo,
paus-de-arara, são passistas,
são flagelados,
são pingentes, balconistas,
palhaços, marcianos,
canibais, lírios, pirados,
dançando-dormindo
de olhos-abertos à sombra
da alegoria
dos faraós embalsamados.



Baby Tortoise
D. H. Lawrence


You know what it is to be born alone,
Baby tortoise!

The first day to heave your feet little by little from the shell,
Not yet awake,
And remain lapsed on earth,
Not quite alive.

A tiny, fragile, half-animate bean.

To open your tiny beak-mouth, that looks as if it would never open,
Like some iron door;
To lift the upper hawk-beak from the lower base
And reach your skinny little neck
And take your first bite at some dim bit of herbage,
Alone, small insect,
Tiny bright-eye,
Slow one.

To take your first solitary bite
And move on your slow, solitary hunt.
Your bright, dark little eye,
Your eye of a dark disturbed night,
Under its slow lid, tiny baby tortoise,
So indomitable.

No one ever heard you complain.

You draw your head forward, slowly, from your little wimple
And set forward, slow-dragging, on your four-pinned toes,
Rowing slowly forward.
Whither away, small bird?
Rather like a baby working its limbs,
Except that you make slow, ageless progress
And a baby makes none.

The touch of sun excites you,
And the long ages, and the lingering chill
Make you pause to yawn,
Opening your impervious mouth,
Suddenly beak-shaped, and very wide, like some suddenly gaping pincers;
Soft red tongue, and hard thin gums,
Then close the wedge of your little mountain front,
Your face, baby tortoise.

Do you wonder at the world, as slowly you turn your head in its wimple
And look with laconic, black eyes?
Or is sleep coming over you again,
The non-life?

You are so hard to wake.

Are you able to wonder?
Or is it just your indomitable will and pride of the first life
Looking round
And slowly pitching itself against the inertia
Which had seemed invincible?
The vast inanimate,
And the fine brilliance of your so tiny eye,
Challenger.

Nay, tiny shell-bird,
What a huge vast inanimate it is, that you must row against,
What an incalculable inertia.

Challenger,
Little Ulysses, fore-runner,
No bigger than my thumb-nail,
Buon viaggio.

All animate creation on your shoulder,
Set forth, little Titan, under your battle-shield.

The ponderous, preponderate,
Inanimate universe;
And you are slowly moving, pioneer, you alone.

How vivid your travelling seems now, in the troubled sunshine,
Stoic, Ulyssean atom;
Suddenly hasty, reckless, on high toes.

Voiceless little bird,
Resting your head half out of your wimple
In the slow dignity of your eternal pause.
Alone, with no sense of being alone,
And hence six times more solitary;
Fulfilled of the slow passion of pitching through immemorial ages
Your little round house in the midst of chaos.

Over the garden earth,
Small bird,
Over the edge of all things.

Traveller,
With your tail tucked a little on one side
Like a gentleman in a long-skirted coat.

All life carried on your shoulder,
Invincible fore-runner.

From Tortoises 1921

21.2.05

O peso da verdade

"O conhecimento mata o agir; o agir requer que se esteja envolto no véu da ilusão - (...) -
não é a reflexão, não! - é o verdadeiro conhecimento, a ilusão da horrível verdade, que sobrepuja todo motivo que impeliria a agir, tanto em Hamlet quanto no homem dionísico."

F. Nietzsche em "O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música"


"A única coisa certa era o peso na boca do estômago, a suspeita de que algo não ia bem. Não se tratava sequer de um problema, mas sim de ter-se negado sempre, desde cedo, às mentiras coletivas ou á solidão rancorosa daqueles que começam a estudar os isótopos radioativos ou a presidência de Bartolomeu Mitre."

Julio Cortázar em "O Jogo da Amarelinha"

18.2.05

São Luís do Paraitinga

Carnaval 4 a 9 /fev/2005

com Um fim na alça
e oUtro atado à cintUra
mergUlhamos nUm caldeirão de cUltUra
e nadamos onde sombra não passa

pelo Viés das cortinas das dependUradas “Janelas da História”
VislUmbramos Um torpor
emergente da conViVência com esferas
extasiantes, alegres na dor.

as epiglotes titUbeiam e admitem!
respiramos Um caldo Viscoso,
cozido das lascas do dia-a-dia do povo,
processadas pelo gosto dos que temem o além.

ingredientes especiais (especiarias da terra) brincam
e brindam o pecUliar tempero
qUe encanta os tons do esmero
pelo sabor Brasil com que ressoam.

JUca Teles dá (-nos) ignição ao Lençol
qUe enoVela a Maricota e deVolVe-a
ao Pai do Troço qUe, em Vertigem, não se enVolVe
pois Vai no Bico do CorVo rUmo ao Sol.

e no Vórtice da colher de paU,
damos braçadas rUmo á Identidade Nacional
até qUe a Realidade recolhe-nos em sopa,
já temperados da Alegria Local,
embriagados de Amor e Poesia tUdo menos oca.

BIU
13/02/2005

Receita da Dona Cacilda

PS: Dona Cacilda é uma senhorita de 92 anos, miúda, e tão elegante,
que todo o dia às 8 da manhã ela já está toda vestida,
bem penteada e perfeitamente maquiada apesar de sua pouca visão
.

Receita da Dona Cacilda para se manter jovem:

Jogue fora todos os números não essenciais para sua sobrevivência.Isso inclui idade, peso e altura. Deixe o médico se preocupar com eles. Para isso ele é pago.

Freqüente de preferência seus amigos alegres. Os "baixo astrais" puxam você para baixo.

Continue aprendendo.Aprenda mais sobre computador, artesanato, jardinagem, qualquer coisa.
Não deixe seu cérebro desocupado. Uma mente sem uso é a oficina do diabo.
E o nome do diabo é Alzheimer.

Curta coisas simples.

Ria sempre, muito e alto. Ria até perder o fôlego.

Lágrimas acontecem. Agüente, sofra e siga em frente.

A única pessoa que acompanha você a vida toda é VOCÊ mesmo.

Esteja VIVO, enquanto você viver.

Esteja sempre rodeado daquilo que você gosta: pode ser família, animais, lembranças, música,
plantas, um hobby, o que for.

Seu lar é o seu refúgio.

Aproveite sua saúde. Se for boa, preserve-a. Se está instável, melhore-a. Se está abaixo desse nível, peça ajuda.

Não faça viagens de remorsos. Viaje para o shopping, para cidade vizinha, para um país estrangeiro, mas não faça viagens ao passado.

Diga a quem você ama, que você realmente os ama, em todas as oportunidades.

E LEMBRE-SE SEMPRE QUE:“A vida não é medida pelo número de vezes que você respirou,
mas pelos momentos em que você perdeu o fôlego...
de tanto rir...
de surpresa...
de êxtase...
de felicidade...”

17.2.05

Um pouco de nós

A Mente Humana
Iván Izquierdo
Centro de Memória do Instituto de Pesquisas Biomédicas da PUC-RS, Porto Alegre (RS), Brasil
Para a revista Muticiência


Tenho mais de quarenta anos dedicados ao estudo da mente humana em seus diversos aspectos. A maior parte do tempo dediquei à memória em suas várias formas e fases. Mas, para isso, tive que me aprofundar também em outras questões, como os sentimentos, os estados de ânimo e as emoções, seus efeitos no sistema nervoso central, as respostas deste, e os mecanismos que regulam a sua percepção. Como sabemos desde há muitos anos, os sentimentos, as emoções e os estados de ânimo têm uma imensa influência sobre a memória, em muitos casos já bem delimitada e biologicamente previsível. As vias nervosas que registram e regulam os sentimentos, as emoções e os estados de ânimo atuam modulando, através de receptores, cadeias de enzimas específicas em várias regiões corticais, entre elas o hipocampo e demais áreas vinculadas à memória, bem como outras áreas relacionadas à percepção e controle das variáveis psicológicas mencionadas, como o grau de alerta, a ansiedade e o estresse. Tratam-se das vias dopaminérgicas, noradrenérgicas e serotoninérgicas que regulam a percepção de, e as respostas à, a atenção, a ansiedade, o estresse, a excitação e a depressão. A regulação da atividade dessas vias através de remédios usados no tratamento da depressão ou da ansiedade se associa às mudanças cognitivas na percepção, formação e evocação das memórias mais variadas.
Também tive que me debruçar sobre formas da Psicologia que limitam a Filosofia, como a Psicanálise nas suas diferentes expressões; a que achei mais próxima aos conhecimentos biológicos atuais é a Freudiana, a primigênia. Não é a toa que Freud previu, inúmeras vezes, que algum dia seus conceitos e entelequias seriam explicados pela biologia e substituídos por idéias claras de funções nervosas, em alguns casos até com localização anatômica bem determinada. Freud tinha uma sólida formação neurobiológica e publicou vários trabalhos nessa área, inclusive um estudo pioneiro para a sua época sobre os efeitos da cocaína. Em épocas mais recentes, a denominada psicologia cognitiva se desenvolveu imensamente, passou a ser muito usada na terapia contra a depressão, com sucesso, e tem correlatos biológicos muito claros.
Li do que foi escrito sobre a consciência, a natureza dos sonhos, as coisas que foram famosas e já não existem mais. Entre elas o fenômeno do “déjà vu”, visto como uma das formas de epilepsia há até uns 30 anos. Ou as disputas sobre a “localização” do inconsciente, tido como um objeto anatômico, um substantivo, e não como um adjetivo; importante, mas adjetivo enfim. Os sonhos consistem em memórias evocadas internamente, misturadas de uma forma diferente da utilizada na vigília, e não expressadas para o exterior através de comportamentos. A consciência é ainda indefinível em termos rigorosos, e muitos acreditam que sob esse nome escondem-se muitas coisas, entre elas as memórias, níveis de atenção e outras atividades, propriedades e características do tecido nervoso. Hoje, nós que estudamos as Neurociências e vemos através desse estudo o quanto avançamos e o quanto ainda ignoramos sobre a mente humana, nos surpreendemos que poucos anos atrás pudessem ter existido idéias tão fantasmagóricas sobre ela.
Por exemplo, até pouco tempo atrás, confundia-se a mente com a alma. A alma é uma entidade abstrata que o corpo e a mente usam para comunicar-se com Deus; a palavra carece de significado entre os ateus. Acreditem ou não em Deus, os humanos podem ter mentes alertas ou opacas, e até brilhantes, como a de John Nash. Ou mentes doentes, como a do próprio John Nash. Um esquizofrênico, uma vítima de estresse pós-traumático ou um indivíduo deprimido têm a mente doente; mas a sua alma permanece intacta, já que é necessária a postulação de um Deus para se entender a palavra alma, mas não para reconhecer uma doença mental. Cristãos, judeus e muçulmanos acreditam que um doente mental possa ir ao Céu. Os que acreditam na transmigração das almas, como os budistas, os hinduístas e os espíritas, nem sequer cogitam a transmigração das mentes; um recém-nascido (ou um animal) não tem literalmente onde albergar a mente de um adulto.
Não se trata a alma com meios terapêuticos, mas sim a mente, através de remédios antidepressivos, antipsicóticos ou ansiolíticos, e de diferentes tipos de psicoterapia. As funções mentais podem referir-se a localizações anatômicas mais ou menos específicas: fazer, lembrar e extinguir memórias é função importante do hipocampo. A mente é função do corpo e dele depende para existir, sofrer e se manifestar. A alma certamente não tem localização corporal. Os que nela acreditam pensam que aparece e desaparece com o corpo; ou seja, surge com a concepção e evapora-se deste mundo com a morte. A mente não existe após a concepção e muitas vezes desaparece muito antes da morte (aqueles infelizes mantidos vivos como vegetais através de aparelhos, por exemplo).
O conceito de espírito superpõe-se bastante ao da alma; porém, também é muitas vezes aplicado a algo abstrato (vida espiritual, espírito empreendedor, espírito de luta) que difere tanto da alma como da mente. Também não há uma localização cerebral ou corpórea do espírito.
Personalidade, temperamento e inteligência são outras entidades abstratas cujas definições variam de acordo com o autor que as usa. Para alguns psiquiatras, são atributos ou conseqüências da mente; para muitos psicólogos ou pedagogos são características do indivíduo. As duas definições são usadas muitas vezes em conjunto, superpostas. Há quem ache que é difícil ou impossível definir o que é a inteligência, por exemplo.

A memória e a mente.

Certamente a mente humana ou animal depende em grande parte da memória. O pensador italiano Norberto Bobbio, falecido neste ano, dizia que “somos aquilo que lembramos”. Eu costumo acrescentar “e também somos o que decidimos esquecer”. De acordo com nossos hábitos e personalidade, podemos escolher não esquecer as ofensas e as agressões jamais, e nesse caso estaremos propensos à amargura, à paranóia ou ao ressentimento. Podemos escolher esquecê-las por completo, ou reprimi-las até que desapareçam do nosso acervo de memórias importantes, e nesse caso ficaremos muitas vezes indefesos perante a sua reiteração. Podemos também, entretanto, escolher reprimi-las ou extingui-las até que passem a ficar fora do acervo das memórias de uso diário e facilmente acessíveis, mas à nossa disposição caso se tornem necessárias; por exemplo, quando for oportuno esquivar-nos ou defender-nos de novas ofensas ou agressões.
Nossa mente possui os mecanismos para escolher entre essas possíveis soluções. O uso repetido de uma ou outra delas nos leva por rumos diferentes em relação à nossa personalidade; e a personalidade não é algo que se obtém como um diploma em uma certa idade: podemos mudá-la ao longo da vida, como produto das memórias deixadas pelas experiências. O mundo está cheio de pessoas que já foram “boazinhas” e, como conseqüência de uma guerra, uma humilhação ou um infortúnio, se tornaram ressentidas e perigosas. E também de outras que já foram ressentidas e amarguradas e depois de um sucesso, um golpe de sorte, o amor de alguém, o amor de muitos, a realização pessoal, ou qualquer outro motivo (a velhice, por exemplo, se for benigna) tornam-se tolerantes, benevolentes e de trato agradável e frutífero. As mudanças de personalidade pelo conjunto de experiências que temos são muitas vezes inconscientes e até involuntárias; outras vezes são conscientes e produto de nosso julgamento sobre o que é que mais nos convém na sociedade em que vivemos, e de nossa análise cuidadosa das características dessa sociedade. Falei linhas acima da “mente humana ou animal”. É fácil verificar mudanças de temperamento em cachorros ou outros animais de estimação ou de laboratório submetidos a experiências da índole assinalada no parágrafo anterior. Não é por casualidade nem por erros inatos da carga genética que há cachorros que jamais mordem a mão de quem lhes dá comida, e outros que sempre o fazem. Os animais também são aquilo que lembram e aquilo que escolhem esquecer.

As emoções, a mente humana e a memória

É bem presente que, a todo momento de nossa vida, a cada minuto, estamos com algum estado de ânimo ou emocional determinado, e em determinado estado sentimental; e que ambos são facilmente mutáveis. Os estados de ânimo, as mudanças de humor e os estados sentimentais causam e são regulados por vias cerebrais muito bem definidas, que usam como neurotransmissores a noradrenalina, a dopamina, a serotonina e a acetilcolina, cada uma delas atuando sobre receptores bem diferentes espalhados por todo o cérebro. Alguns desses estados favorecem a aquisição, consolidação ou evocação dos mais diversos tipos de memória, por ação das substâncias mencionadas sobre um ou outro receptor nas regiões cerebrais que fazem ou evocam memórias. Às vezes, podem afetar de forma oposta a formação das memórias de curta e longa durações; às vezes, pelo contrário, afetam esses dois tipos de memória no mesmo sentido; às vezes, o efeito de alguma dessas vias predomina sobre o das outras; às vezes, essas vias agem simultaneamente com intensidade semelhante.As memórias muito aversivas ou emocionantes têm sua aquisição, e sua subseqüente consolidação, regulada preferencialmente pelas vias noradrenérgicas centrais, que fomentam sua gravação e portanto, indiretamente, sua permanência. Todos lembramos onde estávamos e o que estávamos fazendo quando vimos na televisão a morte de Ayrton Senna. Muitos recordaremos vivamente, anos depois, algum acontecimento feliz de nossa vida, por exemplo um determinado aniversário, ou o casamento, ou o nascimento dos filhos ou netos. A fidelidade da gravação e sua persistência são notoriamente menores quando se tratam de memórias menos importantes ou chamativas. Na hora da evocação, se produzirá um nível emocional maior (com maior descarga central de noradrenalina) ao evocar aquelas memórias mais “emocionantes” do que outras. De fato, as vias noradrenérgicas, dopaminérgicas e serotoninérgicas são também cruciais e participam como protagonistas importantes na evocação da memória, também nas várias regiões corticais vinculadas à memória.
Além dessas vias, há hormônios liberados no sangue pela hipófise, supra-renal e outras glândulas que afetam profundamente a formação e a evocação de memórias, e muitas vezes acrescentam seu efeito aos aspectos cognitivos de cada memória, tornando-as dependentes deles. A memória passa, assim, a ser “a informação aprendida” mais “o efeito do hormônio que for liberado durante a experiência correspondente”. A liberação do hormônio passa a funcionar como mais um componente da memória, como mais um estímulo condicionado para colocá-lo em termos pavlovianos. É mais fácil evocar essa memória quando estivermos novamente sob o efeito desse hormônio (por exemplo, para experiências muito novidosas a b -endorfina; para experiências muito estressantes, a adrenalina e a adrenocorticotrofina ou ACTH). Denomina-se isto como “dependência de estado”, e é comum justamente em experiências estressantes. O estado é aquele em que nos coloca a substância endógena liberada. Recordaremos mais das memórias de medo quando formos submetidos a novas situações de medo; recordaremos mais das memórias de conteúdo sexual quando estivermos em situações em que a nossa sexualidade for estimulada. Isso se deve ao fator de que em cada caso secretamos diferentes e específicos tipos de hormônio.

A mente humana.

A mente humana abrange, porém, muito mais do que a memória. Nas funções mentais participam a percepção, o nível de alerta, a seleção do que queremos perceber, recordar ou aprender, a decisão sobre o que queremos fazer ou deixar de fazer, a vontade, a compreensão, os sentimentos, as emoções, os estados de ânimo e tudo aquilo que é englobado sob os conceitos de inteligência e consciência.
Todas estas variáveis são fortemente influenciadas pelas memórias e vice-versa; mas são entidades separadas da mesma e com mecanismos próprios. Em termos de áreas cerebrais há alguma especialização, mas também muitas superposições. O hipocampo, estrutura do lobo temporal, e o córtex subjacente (entorrinal) estão fortemente vinculados com a formação e a evocação de memórias. Mas também registram os níveis de alerta e as emoções, que regulam sua função mnemônica. A amígdala modula e regula o desempenho hipocampal nas memórias aversivas ou muito alertantes; mas, além disso, ambas estruturas, amígdala e hipocampo, regulam a secreção de hormônios hipofisários, que por sua vez também regulam a secreção hormonal das glândulas supra-renais, tireóide, e sexuais.Como resultado do registro de variáveis internas ou externas que aumentam ou diminuem os níveis de alerta e atenção e causam ou não ansiedade ou estresse, ocorrem mudanças somáticas (no corpo) que nem sempre se relacionam com a memória: hiperventilação, taquicardia, aumento da pressão arterial, dos movimentos e secreções do tubo gastro-intestinal, secreção de bílis, etc. É claro que todos estes fenômenos por sua vez afetam a curto e a longo prazo a atividade nervosa e, dentro dela, as funções mentais, inclusive as referentes à memória. Há uma relação mente/corpo que é a base da atividade cotidiana de ambos, e também da patologia chamada psicossomática; que não só existe, como é uma das bases da Psiquiatria e da Medicina modernas. O estresse repetido pode alterar alguns dos parâmetros fisiológicos mencionados (pressão arterial, freqüência cardíaca, secreção gástrica) de forma permanente.
Assim, a mente humana abrange muitos aspectos e não é possível estudá-la nem entendê-la, ainda que num nível elementar, sem levar em consideração todos esses aspectos. A mente influi sobre o corpo, o corpo influi sobre a mente, e nem um nem outro tem a ver com a alma ou o espírito.
Sabemos muitas coisas novas e importantes sobre alguns aspectos da mente humana e sua patologia, principalmente sobre a percepção e a memória. Também sabemos como tratar essa patologia muito melhor do que dez ou cinqüenta anos atrás. Mas ainda há muito mais por aprender.
A mente é, hoje, até fácil de descrever em seus aspectos mais gerais, mas a função mental em cada circunstância específica de nossas vidas continua sendo um mistério . Como prever, frente a uma determinada circunstância, se haverá algum cruzamento remoto de informações que nos fará reagir de alguma maneira? Somos surpreendentes, e nisso radica nossa variedade como indivíduos, e também algumas das nossas semelhanças.

16.2.05

A alguém especial

Viver do amor
Chico Buarque1977-1978
Pra se viver do amor
Há que esquecer o amor
Há que se amar
Sem amar
Sem prazer
E com despertador
- como um funcionário
Há que penar no amor
Pra se ganhar no amor
Há que apanhar
E sangrar
E suar
Como um trabalhador
Ai, o amor
Jamais foi um sonho
O amor, eu bem sei
Já provei
E é um veneno medonho
É por isso que se há de entender
Que o amor não é um ócio
E compreender
Que o amor não é um vício
O amor é sacrifício
O amor é sacerdócio
Amar
É iluminar a dor
- como um missionário


Linhas Características

Duas por instante
São as vezes que me invades
Sem pedir licença nem perdão
Tomas conta do meu ser

Numa delas a agonia prepondera
Pois enfincas sua bandeira e
Caminhas para longe
“Simplesmente” meu cerne tanges
Deixas uma borrifada de paraíso
À distância pões tão pequeno narciso
O resvalar de tuas suaves plumas impõe vazio
Explicita minha carência sensitiva de ti

Isso desde que te conheci
Seja nos sonhos ou ao vivo
(Se é que os posso distinguir)
Há tempos!

Na outra sinto êxtase por estar contigo
Seja próximo
Seja escondido em meu abrigo
Contigo
Comigo
Com trigo
Cochilo
À pino
O crocodilo das horas não surte efeito
Pois as devora
Mas o tempo recusa-se
A atarantar da vida o momento predileto.
Quando sua existência não basta.

Aproxima-se

Tudo isto sobre a linha continua do pensamento devoto.

BIU

15.2.05

Poesia

A poesia não é uma expressão do ser do poeta.
A poesia é uma expressão do não-ser do poeta.
O que escrevo não é o que tenho; é o que me falta.
Escrevo para me completar.
Minha escritura é um pedaço arrancado de mim.
Escrevo porque tenho sede e não sou água.
Sou pote.
A poesia é água.
O pote é um pedaço de não-ser cercado de argila por todos os lados, menos um.
O pote é útil porque ele é um vazio que se pode carregar.
Nesse vazio que não mata a sede de ninguém pode-se colher na fonte, a água que mata a sede.
Poeta é pote.
Poesia é água.
Pote não se parece com água.
Poeta não se parece com poesia.
O pote contém a água.
No corpo do poeta estão as nascentes de poesia.
Não.
Não escrevo o que sou.
Sou pedra. Escrevo pássaro.
Sou tristeza. Escrevo alegria.
A poesia é sempre o reverso das coisas.
Não se trata de mentira.
É que somos seres dilacerados.
O corpo é o lugar onde moram as coisas amadas que nos foram tomadas, presença de ausências, daí a saudade, que é quando o corpo não está onde está.
O poeta escreve para invocar essa coisa ausente.
Toda poesia é um ato de feitiçaria cujo objetyivo é tornar presente e real aquilo que está ausente e não tem realidade.
"Like a bridge over troubled waters..."
O que escrevo é uma ponte de palavras que tento construir para atravessar o rio.


Rubem Alves (na página de virada do mês de outubro da Agenda Carpe Diem 2001)

14.2.05

Homenagem

fim de tarde
Fim de tarde, com a suavidade da luz recuando devagar e a mansidão do tempo no seu ritmo remansoso. Artes de desconhecimento urdindo-se espertamente para criar essa intensidade tão própria. Fim de tarde de verão, abrandando o calor e soprando meigamente essas brisas avulsas. Reticente por pura precisão, o tempo arma suas volutas de fragilidade e nelas vai sendo leve e levita. Como um livro-luva, impresso por transparências, direito-avesso entrelaçados amorosamente pela fluidez da página, arborescências imaginárias por gosto e vivacidade, eternidade daquele exato instante, algazarra de fadas ligeiras e pétalas.
Rubens Rodrigues Torres Filho em "Poros" - 1989
mas o cisco


Corre o risco de escrever.
O risco da escrita corre
pela página deserta
se meu coração disserta
sobre o susto de viver.

Mas o cisco de entrever
colhe o disco da pupila
nos sulcos do acontecimento
no giro do acontecer.

Rubens Rodrigues Torres Filho em "O vôo circunflexo" -1981

11.2.05

Samba e Vida


Amor no Coração

"Quem viver verá que não foi em vão, eu quero é muito amor no coração
BIS
Meu samba não tem dose certa é um grito de alerta
Mensagem do nosso povo
É, oh, pois é, uma palavra de amor que não se apaga com a dor BIS
Acende um sorriso no.....vo
( E no coração )
No coração festeiro, verdadeiro, brasi......leiro
Se faz a esperança em todas as crianças: os herdeiros
De nossas raízes, dos dias felizes que temos pra dar
O que é seme.........ado no nosso roçado
Se quiser vai plantar ( Chega de me dá me dá ... )
E chega de me dá me dá, agora é toma lá dá cá
E chega de me dá me dá, agora é toma lá dá cá (Vai ecoar ... )
Vai e....coar, nos quatro cantos da terra
Nosso brado de guerra contra o fantasma da opressão
Simples como a gota do oceano
Trago do cotidiano trincheiras contra a invasão."



Quem viver verá

Não ver o viver, apenas fazê-lo: máxima da Infância.
Embevecida da naturalidade, de suas peripécias vem sua magia.
Pureza materializada à vista da vida, na simples ignorância: Pra que ânsia?
Quem viver verá tanta luz, conhecerá a vida e não a nostalgia.

Adolescência: Espírito oposto, buraco negro de cujas garras nada escapa.
Estágio escultor de valores, dos desejos das descobertas:
Amor, sonho, um sistema, normas, o medo, a poesia. As portas são abertas.
Quem viver verá a vontade de viver, a ânsia pelo saber no topo da escarpa.

O fruto, então, amadurece.
A (ná) fase Adulta.
Produtividade ao pico. Busca-se o concreto:
Cimento = a responsabilidade
Areia = o dinheiro
Cascalho = o prestígio
Água = a estabilidade
As patas são acorrentadas; os sonhos, afogados. Tudo é reto.
Quem viver verá uma britânica marinha redomando Napoleão, enegrecendo a habilidade.

Rompimento do pedúnculo: queda desnorteante: a Velhice estarrecedora.
Encara-se estaticamente a morte da vida. Chegada a hora da pesagem,
Chega a aceitação: o papel está cumprido; a terra ao invés de miragem.
Quem viver verá o auge da displicência: a vida gasta com a morte, a vencedora.

Toda( )via, não basta ter visão; temos de ter a vida inteira e vivê-la como vida.

BIU
1999

Pão e Vinho

Cólera da Alma

"Basta olhar para a cara dos que amam.
São olhos de lágrimas enternecedoras.
São vozes entrecortadas pela emoção.
São lábios aflorados em prece.
É uma língua dulçurosa que pede carinho.
São braços que se estendem pedindo amparo.
É um corpo amolecido que procura apoio.
É um perene e contante desvanecimento em toda a estrutura anatômica."
...

A Herança de Adão

"O amor tem raízes profundas no mais íntimo do nosso ser e atormenta despoticamente o coração humano.
Não há inquietude tão dolorosa e cruciante como a da juventude que principia a amar.
O despertar para a consciência desse problema é como atear fogo a um estopim.
Não há quem evite a explosão."

Padre Antônio Vieira em "Amar, Verbo Intransitivo"

10.2.05

Dicas Veríssimas

Amor

Às vezes, as pessoas que amamos nos magoam, e nada podemos fazer senão continuar nossa jornada com nosso coração machucado.
Às vezes nos falta esperança, mas alguém aparece para nos confortar.
Às vezes o amor nos machuca profundamente, e vamos nos recuperando muito lentamente dessa ferida tão dolorosa.
Às vezes perdemos nossa fé, então descobrimos que precisamos acreditar, tanto quanto precisamos respirar: é nossa razão de existir.
Às vezes estamos sem rumo, mas alguém entra em nossa vida, e se torna o nosso destino.
Às vezes estamos no meio de centenas de pessoas, e a solidão aperta nosso coração pela falta de uma única pessoa.
Às vezes a dor nos faz chorar, nos faz sofrer, nos faz querer parar de viver, até que algo toque nosso coração, algo simples como a beleza de um por do sol, a magnitude de uma noite estrelada, a simplicidade de uma brisa batendo em nosso rosto, é a força da natureza os chamando para a vida.

Você descobre que as pessoas que pareciam ser sinceras e receberam sua confiança, te traíram sem qualquer piedade.
Entende que o que para você era amizade, para outros era apenas conveniência, oportunismo.

Você descobre que algumas pessoas nunca disseram eu te amo, descobre também que outras disseram eu te amo uma única vez e agora temem dizer novamente, e com razão, mas se o seu sentimento for sincero poderá ajudá-las a reconstruir um coração quebrantado.
Assim ao conhecer alguém, preste atenção no caminho que essa pessoa percorreu.
Não deixe de acreditar no amor, mas certifique-se de estar entregando seu coração para alguém que dê valor aos mesmos sentimentos que você dá, manifeste suas idéias e planos, para saber se vocês combinam, esteja aberto a algumas alterações, mas jamais abra mão de tudo, pois se essa pessoa te deixar, então nada irá lhe restar.

Aproveite ao máximo seus momentos de felicidade, quando menos esperamos iniciam-se
períodos difíceis em nossas vidas.
Tenha sempre em mente que às vezes tentar salvar um relacionamento, manter um grande amor, pode ter um preço muito alto se esse sentimento não for recíproco, pois em algum outro momento essa pessoa irá te deixar e seu sofrimento será ainda mais intenso, do que teria sido no passado.

Pode ser difícil fazer algumas escolhas, mas muitas vezes isso é necessário, existe uma diferença muito grande entre conhecer o caminho e percorrê-lo.
Não procure querer conhecer seu futuro antes da hora, nem exagere em seu sofrimento, esperar é dar uma chance à vida para que ela coloque a pessoa certa em seu caminho.

A tristeza pode ser intensa, mas jamais será eterna.
A felicidade pode demorar a chegar, mas o importante é que ela venha para ficar e não esteja apenas de passagem, como acontece com muitas pessoas que cruzam nosso caminho.

Luiz Fernando Veríssimo

3.2.05

Amor Dantesco

"Vive a ressaca do corpo
Remove a dor do engodo
De cair nas armadilhas do corpo"
Anônimo

A partir daquela visão, o meu espírito natural começou a sentir-se interdito no seu modo de agir, pois a alma inteira estava tomada pelo pensamento daquela mais do que gentil; em pouco tempo, minhas condições eram de tal jeito frágeis e débeis que tristes ficavam muitos dos meus amigos ao me verem; outros, cheios de inveja, queriam saber de mim justamente aquilo que eu queria ocultar de todos. Dando-me conta, então, das maldosas perguntas que me faziam, e por vontade do Amor, que me ordenava obedecer os ditames da Razão, respondia-lhes que me encontrava sob o império deste Amor. Do Amor, dizia - e não podia deixar de dizer, ou esconder, tantas eram as marcas que trazia no rosto. E quando me perguntavam:
"Em nome de quem de tal forma o deformou o Amor?", eu, sorrindo, olhava para eles, e calava.

Dante Alighieri em "Retratos do Amor quando Jovem"

Sutilezas da Relação

CONTARDO CALLIGARIS

"Closer - Perto Demais": por que somos infelizes em amor?

Concordo com Caetano Veloso, "de perto ninguém é normal". Mas "Closer - Perto Demais", de Mike Nichols, me deixou pensando diferente: de perto, somos normais demais. O filme é uma demonstração tocante de nossas impotências e incompetências sentimentais. Se você quer saber por que, em regra, somos infelizes em amor, não perca.
Para não estragar o prazer de quem não viu o filme, nada de resumo, apenas as reflexões fragmentárias com as quais passei a noite, depois de ter assistido a "Closer - Perto Demais".

1) Por que, no meio de uma história amorosa que funciona, um encontro (que sempre parece mágico) pode levar alguém a trocar a intimidade de um casal companheiro por uma visão? Os evolucionistas dizem que os homens são infiéis por necessidade biológica. Para que a espécie continue, os machos seriam programados com o desejo de fecundar todas as fêmeas possíveis. A teoria tem uma falha: as mulheres são tão infiéis quanto os homens (embora os homens se recusem a acreditar nessa banalidade).
O senso comum tem outra explicação: a paixão iria se apagando com a repetição, os humanos gostariam de novidade.
Pequeno problema: a idéia de que a novidade seja um valor é especificamente moderna; no entanto a inconstância em amor é um hábito antigo.
Outro problema ainda maior: na condução de nossas vidas, somos obstinadamente repetitivos. Insistimos nas mesmas fantasias e nos mesmos sintomas. Contrariamente ao que diz o provérbio, errar é divino, perseverar é humano. Por que seria diferente em matéria amorosa? Como pode ser que um encontro, em que mal se sabe quem é o outro ou a outra, contenha uma promessa que basta para levar alguém a dar um chute num amor que dura?
Tento responder: apaixonar-se é idealizar o outro, durar no amor é lidar com a realidade do amado ou da amada.
Antes de ponderar os charmes da idealização, duas observações.
Um impasse: para manter a paixão, devo continuar idealizando o parceiro. Mas, para idealizar o outro, devo mantê-lo a distância. Se mantenho o outro a distância, renuncio aos prazeres de amor, companheirismo, cumplicidade, convivência.
Um paradoxo: se me separo porque me apaixono por outra ou outro, o parceiro que deixei se distancia de mim, portanto volto a idealizá-lo e a me apaixonar por ele.

2) Por que gostaríamos tanto de idealizar o outro que vislumbramos num novo encontro? Uma nova paixão amorosa é provavelmente o sentimento que mais pode nos transformar, para o bem ou para o mal.
Por exemplo, se o outro me idealiza, carrego seu ideal como um casaco novo: modifico minha postura para que o pano caia bem no meu corpo. De uma certa forma, tento me parecer com o ideal que o outro ama em mim.
Cada amor, quando começa, é uma aventura. Não porque encontro um novo parceiro, mas porque, ao me apaixonar, descubro ou invento um novo ideal e, ao ser amado, mudo para me aproximar do que o outro imagina que eu seja.
A inconstância amorosa talvez seja a expressão imediata do desejo de mudar -não de trocar de parceiro, mas de se reinventar. Não é estranho que, na hora em que um amor começa, alguém decida se dar um novo nome. Nenhuma mentira nisso, apenas a convicção e a esperança de que a paixão nos transforme. Infelizmente, mudar é difícil: a sedução exercida pelos novos amores é uma veleidade, um pouco como as resoluções de que as coisas serão diferentes no ano que começa.

3) Dizem que um casal que se ama briga muito. O uso erótico das brigas é conhecido: a paz se faz na cama. Menos conhecido é o uso amoroso das brigas: chegar ao limite da ruptura pode ser um jeito de recomeçar, de voltar ao momento inicial da paixão, quando ambos esperavam que o amor os transformasse.
Problema: ninguém sabe qual é o ponto de equilíbrio além do qual as brigas não garantem renovação nenhuma, apenas desgastam um amor que se perde.

4) Alguém se apaixona por outra pessoa porque, ele se queixa, sua parceira precisa dele. É aquela coisa: seu amor me exige demais, você me sufoca, me prende. Isso, é claro, é um jeito de dizer: com você sou sempre o mesmo. Também é uma projeção: separo-me porque não agüento minha própria dependência de você. Visto que me detesto por estar a fim de lhe pedir amor a cada minuto, acho intolerável que você me peça. Quem pensa e age assim, em geral, fica sozinho no fim.

5) Um homem volta para o lar depois de ter estado nos braços de outra.
Sua mulher pergunta: você me ama ainda?
Ela tem razão, é a única pergunta que importa.
Uma mulher volta para o lar depois de ter estado nos braços de outro.
Seu homem pergunta: você esteve com ele? Insiste: quero a verdade. Pede os detalhes: gostou? Gozou? Onde aconteceu, em que posição, quantas vezes?

O ciúme feminino é uma exigência amorosa. O ciúme do homem é uma competição com o outro, um duelo de espadas, uma esgrima homossexual que tem pouco a ver com o amor pela amada e muito a ver com as excitantes lutinhas masculinas da infância.

Enfim, quem sabe o filme nos ajude a inventar jeitos de amar menos desafortunados e mais interessantes

Relâmpago

Relâmago


Na quarta-feira de cinzas, o cinza do céu
Anuncia o vôo do véu
O véu que resguarda nestes dias
Arrasta consigo as suaves estacas voluntárias como cobaias
Experimentação
Riscos
O Festival da Carne
Dá-nos aval para o convívio espiritual
Tal que, por horas, a palavra é banal;
O toque e o olhar explicitam do momento o cerne

O rosto de princesa e o corpo de deusa
Inundam o pensamento e acolchoam o coração
De tal modo que uma obra-prima repousa sobre a lousa
Com todas as cores, restando ao céu apenas o cinza-solidão

Cada movimento para a aproximação
Mostra o cruzamento de desejos
A carência de afagos é encoberta de beijos
De todas as formas e em todas as direções.
Lábios tocam-se incessantemente
Hálitos.
Cruzamento
Entrelaçamento

E os relâmpagos cruzam o céu,
Ao deixar,
Conectando pontos:
Seja céu e terra, verticais
Sejam horizontais
Já que os dois tornaram-se iguais.

BIU

2.2.05

Observe e mantenha-se jovem

O Olho que vê

Os cães pequenos olham para os cães grandes;
Observam as intratáveis dimensões
E as curiosas imperfeições do odor.
Eis um grupo de machos compenetrados:
Os homens jovens olham de cima os mais velhos,
Consideram-lhes a mente de meia-idade
Observam-lhes as correlações inexplicáveis.

Tsin-Tsu disse:
Somente nos cães pequenos e nos jovens
Encontramos a observação minuciosa.

Erza Pound (tradução de Mário Faustino)
Em "Lustra" (1916)

Figura de Dança

- para as bodas em Cananéia -

De olhos escuros,
Ó mulher de meus sonhos,
De sândalo e marfim,
Não há nenhuma igual entre as dançarinas,
Nenhuma com pés rápidos.

Não te encontrarei nas tendas
Na escuridão amortecida.
Não te encontrarei junto à nascente
Entre as mulheres com seus cântaros.

Como um renovo sob a cortiça são seus braços;
Tua face é como um rio com luzes.

Alvas como a amêndoas são tuas espáduas;
Como amêndoas recentes desnudadas da casca.
Não te defendem com eunucos
Nem com barras de cobre.

Ouro-turquesa e prata estão no lugar do teu repouso.
Uma escura veste, com fios de ouro em frisos
Colheste ao teu redor,
Ó nathat-Ikanaie, "Árvore-ao-pé-do-rio".

Como um regato entre o junco são tuas mãos sobre mim;
Teus dedos uma gélida corrente.

Tuas servas são tão alvas como seixos.
Ah! sua música ao teu redor.

Não há nenhuma igual entre as dançarinas,
nenhuma com pés rápidos.

Erza Pound (tradução de Augusto de Campos)
Em "Lustra" (1916)

1.2.05

Dicas portuguesas de sobrevivência

NAVEGUE

Navegue,
descubra tesouros,
mas não os tire do fundo do mar,
o lugar deles é lá.

Admire a lua,
sonhe com ela,
mas não queira trazê-la para a terra.

Curta o sol,
se deixe acariciar por ele,
mas lembre-se que o seu calor é para todos.

Sonhe com as estrelas,
apenas sonhe,
elas só podem brilhar no céu.

Não tente deter o vento,
ele precisa correr por toda parte,
ele tem pressa de chegar sabe-se lá onde.

Não apare a chuva,
ela quer cair e molhar muitos rostos,
não pode molhar só o seu.

As lágrimas?
Não as seque, elas precisam correr na minha,
na sua, em todas as faces.

O sorriso!
Esse você deve segurar,
não o deixe ir embora, agarre-o!

Quem você ama?
Guarde dentro de um porta-jóias, tranque, perca a chave!
Quem você ama é a maior jóia que você possui, a mais valiosa.

Não importa se a estação do ano muda, se o século vira e se o milênio é outro, se a idade aumenta;
conserve a vontade de viver, pois não se chega a parte alguma sem ela.

Abra todas as janelas que encontrar e as portas também.
Persiga um sonho, mas não o deixe viver sozinho.
Alimente sua alma com amor, cure suas feridas com carinho.

Descubra-se todos os dias, deixe-se levar pelas vontades,
mas não enlouqueça por elas.

Procure, sempre procure o fim de uma história, seja ela qual for.
Dê um sorriso para quem esqueceu como se faz isso.

Acelere seus pensamentos,
mas não permita que eles te consumam.
Olhe para o lado, alguém precisa de você.
Abasteça seu coração de fé, não a perca nunca.
Mergulhe de cabeça nos seus desejos e satisfaça-os.

Agonize de dor por um amigo,
só saia dessa agonia se conseguir tirá-lo também.

Procure os seus caminhos, mas não magoe ninguém nessa procura.
Arrependa-se, volte atrás, peça perdão!
Não se acostume com o que não o faz feliz,
revolte-se quando julgar necessário.

Alague seu coração de esperanças,
mas não deixe que ele se afogue nelas.

Se achar que precisa voltar, volte!
Se perceber que precisa seguir, siga!
Se estiver tudo errado, comece novamente.
Se estiver tudo certo, continue.
Se sentir saudade, mate-a.
Se perder um amor, não se perca!
Se achá-lo, segure-o!

FERNANDO PESSOA

Poesia e Paisagem Recifenses

"Você percebe o tamanho do artista quando a cidade dele se confunde com sua obra. Isso acontece com Roma & Fellini, Tom Jobim & Rio, Dorival Caymmi & Bahia, Woody Allen & Nova York... Poesia se confunde com paisagem. Quando chego em Recife, mesmo sem walkman no ouvido começo escutar lá dentro da alma Chico Science o tempo todo. É impressionante a gritante presença de Chico por aqui. Até motorista de táxi fala dele e me mostra o poste onde desgraçadamente ele se desmaterializou para outra dimensão das pontes e overdrives dessa cidade hiper musical.O Porto Musical começou ontem com uma grande festa, é claro. E o nome dele foi citado muitas vezes. E na maior parte delas, por alemães, franceses, italianos...
Viva Chico Science, Viva o Mangue, Viva Pernambuco!" Marcelo Tas (marcelotas.blog.uol.com.br)


A CIDADE

O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, nem importa se são boas

E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs

A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce

A cidade se encontra prostituída
Por aqueles que a usaram em busca de saída
Ilusora de pessoas de outros lugares
A cidade e sua fama vai além dos mares

No meio da esperteza internacional
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos

A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce

Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu
Pra a gente sair da lama e enfrentar os urubu
Num dia de sol Recife acordou
Com a mesma fedentina do dia anterior