18.12.06

Solo Fértil



Série “O minhocário”
I - Fezes, Urina e Sangue. Bastante deste último


Uma leve palpitação, suores e um sopro frio na boca do estomago apareceram centésimos de milésimos antes de Carmen receber a consciência a lembrança de que tinha de buscar os resultados dos exames laboratoriais.
Os medos e neuroses kaypislonizam a atenção de Carmen. Várias vezes a tira de papel dobrada no console do Fusca sinalizou fantasmas bafejando sua mente, mas escorregavam pela aflição aos possíveis desdobramentos de uma doença fatal, à ramificações onipresentes da morte.
Entretanto, naquele momento, naquela situação céstica da tarde, um impulso de enfrentar a vida e seus dissabores sofregamente emergiu. Tinha de encarar sua doença, mesmo sendo uma doença de doenças.
Só de pensar os analistas do laboratório poderiam ter feito um teste de AIDS, Carmen reconheceu um calor na face. Encarou a morte eminente e irremediável.
Aceitou o desafio.
Hoje ou nunca mais poderá fazer as pazes com seu corpo, sua intimidade. Que a detecção precoce de sua enfermidade ideal possa aumentar as chances de sua sobrevida. No caminho do guichê do galpão de arquivos, imagina quem será o primeiro a receber a noticia, quem poderá oferecer o melhor acolhimento, sem pena – Carmen nunca gostou de ser a coitadinha. Sabe com quem poderá fazer os primeiros pedidos dos coquetéis. Lembra de um ator na TV que disse ser aidético há 17 anos. Soma o número a sua idade atual e chega a um bom numero para sua morte, seu enterro, ainda mais se comparado com os tuberculosos de antigamente, os suicidas românticos ou os desnutridos recém-nascidos africanos. Aceitou a morte.
Enquanto Alzira busca a pasta com os resultados dos exames, Carmen olha a figura obesa e crente da secretária: a blusa clara florzinhas, a saia azul, a sandália preta, o cabelo crespo preso com uma piranha vermelha, o brotamento dos pêlos raspados na face formando uma barba macia, seu jeito amoroso e solicito.
Alzira traz as folhas com letras impressas – de certo é de uma das primeiras impressoras Epson lançadas e descartada por outros departamentos do hospital. A palpitação amortecida por uma coragem que dá as caras pela primeira vez.
Teve raiva da médica que pediu os exames. Quando foi ao clinico geral, queria apenas uma opinião sobre pêlos que encravavam na virilha. “Pra não perder a viagem”, a médica sugeriu fazer analises dos fluidos corporais e das fezes.
Aos poucos, a visão embaralhada define os caracteres nos papel. Não localiza nenhuma sentença ou veredicto, apenas números, porcentagens seguidos de unidades sem significado algum. Não há nenhum URGENTE em vermelho, mas também não há nenhuma absolvição, uma chave para suas correntes.
Os “negativos” não informam, não dissolvem a nuvem de desespero que irrompem pelas trincas de seu rosto em sorrisos de despedida da atendente. Aos poucos, Carmen percebe que, na frente de cada variável analisada, há um intervalo de normalidade para as medidas. Confere todos os parâmetros do sangue e urina... Mas e os das fezes?
Voltou ao guichê. O exame das fezes não está pronto. Uma iluminação chega a carmen. Uma confirmação de que algo está errado. Eles, provavelmente, devem tomar providencias mais drásticas dada a violência que a descoberta da doença intestinal pode provocar no hospedeiro, ao menos conclui isso o bolo de minhocas da cabeça de Carmen.
Parasitas, doença de Chagas, vermes, esquistossomose, larvas, mosquitos, ovos na corrente sanguínea, lombrigas, ventosas, tênia, carne de porco mal-passada, hospedeira, poças, descalça, frieiras, verduras mal-lavadas, os passeios, as comidas caseiras, de sitio de fim de semana...
Tudo é uma turbulência na cabeça de Carmen. Trancou o cú e ganhou mais uma minhoca subiu para sua coleção.

Biu
30-11-2006

15.12.06

A Sivuca e sua sanfona


Rumo ao Sumo

Disfarça, tem gente olhando.
Uns, olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando,
olhando ou sendo olhado.

Outros olham pra baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido.
Raros olham pra dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso, a alma, esse conto de fada.

Paulo Leminski - La vie en close




Aquele que conhece sua masculinidade,
e mesmo assim mantém sua feminilidade,
torna-se a ravina do mundo.
Por isso, a vida eterna não o abandona,
ele torna-se criança outra vez.

Aquele que conhece o branco
e ainda assim conserva o negro,
torna-se exemplo para o mundo.
Sua eterna virtude se torna infalível,
e ele retorna ao infinito.
Aquele que, ao conhecer a glória,
está consciente do ocaso,
torna-se o vale do mundo.
Sendo o vale do mundo,
sua eterna virtude é o bastante,
e ele volta ao estado de madeira virgem
que será cortada e usada em instrumentos.

Sábios que utilizam essas ferramentas
tornam-se senhores dos servos.
O Senhor supremo usa a madeira sem cortá-la.

Lao Tsé - Tao Te King

31.10.06

Perguntas?

Linha Reta

(pausa)

Suspiro.

E eu, que era rodeado de amigos,
Pensava: tinha o controle da situação.
Olho e vejo-me, indivíduo desesperado,
O chão sobre o qual pisava
Agora se move; tornou-se movediço,
armadilha de meus próprios passos.
A ausência do amor partido
Suscita o temor da espera...
É preciso continuar a caminhada.

Por que digo isto?
Suspiros de um angustiado,
Nada tenho a esconder.
Aquilo que errei?!
Se ao menos existisse...

Os caminhos sobre os quais trilhei
Tornaram-se desconexos...
Onde hei de chegar com esta prosa?

“O círculo possui a singular propriedade
De ser uma linha reta sem começo ou fim,
Tal qual o suplício da ansiedade
Com que hei de encerrar este desabafo!”

(pausa)

Mais um suspiro.

JR Mialichi

Respostas



Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas?
Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol

E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
Alberto Caeiro ("O Guardador de Rebanhos")

18.10.06

Tempo hipopotametal

Um esforço moroso e abafado pela limitada capacidade de efetiva ação tira o corpo obeso do poço esverdeado de merda mole.
Sobe os degraus de concreto submersos.
Os passos vagarosos conduzem a cabeça baixa do animal pela terra batida até a poça do canto. Fareja a água empoçada enquanto a barriga acortinada por camada lateral de gordura fica submersa. Larga-se e as narinas rosas continuam a respiração...

...mergulhada num tempo próprio, desnaturada pelo inchaço das horas, desprovido de sua inerência biológica , de sua capacidade propulsora de uma sexualidade.
As paredes e grades retém o tempo hipopotametal desatado do universo civilizado, inerte aos ruídos visitantes, aos dias e noites.
Sensível apenas às baias plenas de frutas e verduras e às cagadas verdes e bem definidas ao longo do embosteado fluxo do dia.

4.10.06


Ainda Assim...


Still I Rise

You may write me down in history
With your bitter, twisted lies,
You may trod me in the very dirt
But still, like dust, I'll rise.

Does my sassiness upset you?
Why are you beset with gloom?
'Cause I walk like I've got oil wells
Pumping in my living room.

Just like moons and like suns,
With the certainty of tides,
Just like hopes springing high,
Still I'll rise.

Did you want to see me broken?
Bowed head and lowered eyes?
Shoulders falling down like teardrops.
Weakened by my soulful cries.

Does my haughtiness offend you?
Don't you take it awful hard'
Cause I laugh like I've got gold mines
Diggin' in my own back yard.

You may shoot me with your words,
You may cut me with your eyes,
You may kill me with your hatefulness,
But still, like air, I'll rise.

Does my sexiness upset you?
Does it come as a surprise
That I dance like I've got diamonds
At the meeting of my thighs?

Out of the huts of history's shame
I rise
Up from a past that's rooted in pain
I rise
I'm a black ocean, leaping and wide,
Welling and swelling I bear in the tide.
Leaving behind nights of terror and fear
I rise
Into a daybreak that's wondrously clear
I rise
Bringing the gifts that my ancestors gave,
I am the dream and the hope of the slave.
I rise
I rise
I rise.

Maya Angelou


(Tradução: Mauro Catapodis

AINDA ASSIM, EU ME LEVANTO

Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.

Minha presença o incomoda?
Por que meu brilho o intimida?
Porque eu caminho como quem possui
Riquezas dignas do grego Midas.

Como a lua e como o sol no céu,
Com a certeza da onda no mar,
Como a esperança emergindo na desgraça,
Assim eu vou me levantar.

Você não queria me ver quebrada?
Cabeça curvada e olhos para o chão?
Ombros caídos como as lágrimas,
Minh'alma enfraquecida pela solidão?

Meu orgulho o ofende?
Tenho certeza que sim
Porque eu rio como quem possui
Ouros escondidos em mim.

Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.

Minha sensualidade incomoda?
Será que você se pergunta
Porquê eu danço como se tivesse
Um diamante onde as coxas se juntam?

Da favela, da humilhação imposta pela cor
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, profundo na fé,
Crescendo e expandindo-se como a maré.
Deixando para trás noites de terror e atrocidade
Eu me levanto
Em direção a um novo dia de intensa claridade
Eu me levanto
Trazendo comigo o dom de meus antepassados,
Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E assim, eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto. )


27.9.06

Em relação à etimologia da palavra aniversário, ela vem do latim anniversarius, que significa o que volta todos os anos ou o que acontece todos os anos.
Quanto ao costume de comemorar o dia do nascimento de alguém, segundo estudiosos, tal prática teve início em Roma: “Esta solenidade, que se renovava todos os anos, era festejada sob os auspícios do Gênio que se invocava como a divindade que presidia ao nascimento das pessoas. Costumavam erguer um altar sobre a relva e o cercavam com ervas e plantas sagradas. Junto desses altares as famílias ricas imolavam um cordeiro”*
O nosso conhecido bolo de aniversário, por sua, originou-se na antiga Grécia, quando se homenageavam, no sexto dia de cada mês, à deusa Ártemis. Tal festa era realizada com um bolo cheio de velas que simbolizavam a claridade da Lua que se espalhava à noite sobre a Terra.

*Dicionário da Mitologia Latina. Spalding, Tassilo Orpheu. Editora Culturix. São Paulo, 1972 – p. 159).
Jaime Nunes Mendes

21.9.06

Sua anatomia põe suas palavras em ação


"The breasts go out; the derriere juts back; the leg elongates," she says, as her anatomy puts her words into action. "Men find that very attractive."
(Gillion Carrara, a professor in the fashion department of the School of the Art Institute of Chicago)

June Swann, the shoe historian, says, "It's like the circus. You can learn to walk on anything if you put your mind to it."
(June Swann, the shoe historian)

15.9.06

Alargamento


"A arte é uma contribuição para o alargamento da consciência do novo ou do desconhecido e para a modificação do homem e da sociedade. É necessário que a arte se converta em fator funcional de estética e humanização do processo civilizador em todos os seus aspectos. A função do artista deve ser a de contribuir para a conscientização das grandes idéias que formam a nossa realidade atual.”
Koellreutter

1.9.06

Carga


“Sob(re) o Tempo”

Antes de tudo, ou seja, nada
É preciso, o tempo, defini-lo
Se reflito, como hei de explicá-lo?
Se o faço, tomo sua medida

Um dia...
...É o intervalo que separa
Dois sonhos, duas fronteiras
A realidade desmascara
A fantasia que se queira

Um ano...
...É a distância que divide
Dois corpos, duas jornadas
A convergência é o limite
Que define esta empreitada

Muitos sonhos se sucedem
Nestas jornadas distintas
Todos eles me acometem,
Reencontrá-la, amor, ainda...

J.R. Mialichi

31.8.06

Infatilidade?


Cartum da Criação

Ele come ele que come ele que come ele que come isto que come aquilo que come poeira. A poeira leve do chão.
A cadeia alimentar viciada pelo instinto comilão.
Predador e presa confundidos no ciclo do vôo ao chão.
A não ser que seja um gato acrobata do circo de Vostok, sua ansiedade é o seu caixão.
Vê-se tudo aqui: do alpiste inofensivo e digerido ao cachorro bocarrão.
O pássaro protege-se na prisão, com olhar de garanhão.
O gato inquieta-se por um pássaro fujão.
O cachorro bojudo espera o salto refeição, bobo de satisfação e com a sensação de pança cheia. O rabo abana o seu dono.

Provocação
Uma nota cantada de insinuação.

Um pulo certeiro: fuça na grade guardião.
Está aberta a saída, o portão da imensidão.
O gato esperneia, despenca e faz um arco apoiado nos dentes do comilão.

Eis que nosso pássaro espertalhão alça vôo e libera a rajada de restos de alpiste.
Lambuza gato e cachorro e voa um canário bem safado, com olhar maroto e um traseiro artilharia pesada.

OS: até parece uma metáfora boba, mas sei lá: instinto criador enjaulado, esperado pelo ego, esperado pelo bocarrão do superego. O que se busca então é a rajada na arrogância, um vôo livre e leve depois do cagão.

25-03-2006
Felipe Modenese

30.8.06

Jornalismo Literário II - Feiticeiros

Artesãos da captura
Felipe Modenese /ago 2006

“Nada é mais seguro da própria recompensa do que a serenidade, pois, no seu caso, recompensa e ação são uma coisa só.”
A. Schopenhauer


Todos os dias, homens reúnem-se num quintal para costurar. Continuam na lida até que o serviço esteja terminado. Além de paciência e habilidade, têm em comum o sobrenome Alexandrino Daniel. São membros de uma família de pescadores do bairro Campeche, em Florianópolis. Há anos encontram-se para reconstruir a rede usada durante os meses da pesca da tainha.
Homem, ambiente e trabalho. Um emaranhado de palavras procura reconstruir excertos desse cenário.



****Chegadas****

Um banco de madeira em frente de um rancho sustenta três senhores sentados.
- Boa tarde! – aproximo-me pelas costas.
Por um breve período, a voz estranha aos ouvidos suspende a atividade. Enquanto retomam, apresento-me e peço licença. Minha presença causa pouco desconforto aos homens. A reação tranqüila do trio indica que o mundo tem pouca novidade a apresentar e, junto da aparência física, mostra a idade avançada do grupo.
Um pedaço de bambu apoiado nas paredes laterais de madeira ripada mantém distendido um trecho de algo que parece um enorme tecido, enquanto os senhores, sentados, fiscalizam o quadriculado de linha. O tecido esconde-se às dobraduras e os homens esticam o trecho da rede com os dois braços, como o faz aquele que está prestes a dar o primeiro passo dentro de uma mata fechada.
Chegam mais dois senhores para ajudar na tarefa. Ambos de cabelos brancos. Um bem mais velho que o outro. Depois de cumprimentos aos olhares, sem titubear, começam a atuar sobre o mesmo objeto.


**** “Táio” ****

Há 15 anos compraram a rede para a pesca da tainha. Há quatro transformoram-na numa rede “feiticeira”. Mas há muito mais estão na pesca
Passados os meses de maio e junho em que os cardumes de tainha aproximam-se da costa e a captura é farta, os donos da rede têm de reparar os estragos do uso contínuo e intenso. Ano após ano.
O rancho de madeira que guarda a rede fica no quintal da casa de seo Adriano. Ao lado, separada por um corredor de plantas, fica a casa do irmão, seo Chico. Os dois últimos a chegar são pai e filho: seo Euzébio, irmão mais velho de Chico e Adriano, e um de seus oito filhos, Daniel.
A rede, como contam, tem cerca de 600 metros de comprimento. São três “panos” superpostos: o do meio tem menor quadriculado, entre os outros dois de maior abertura. Compõem a chamada “feiticeira”.


Algum homem experiente, o “vigia”, fica num barco no mar na época da tainha. Os cardumes chegam, o que, segundo Seo Adriano, não é difícil de se saber porque “a água fica vermelha” e “qualquer um percebe”. O vigia logo sinaliza aos pescadores a espera. Os barcos saem da praia para o alto-mar, e a rede vai sendo solta. A extremidade com chumbo atinge o fundo e larga os panos na vertical. O barco vira e continua paralelo à areia. Voltam à praia num outro ponto, distante uns 200 metros da saída. Está feito o cercado com a rede, uma cortina que separa os peixes capturados dos livres para o oceano.
Cerca de 30 homens em cada extremidade puxam a rede, fazendo o arrastão do pedaço de mar cercado. O feitiço da rede funciona aí, quando peixes em fuga arrastam a rede do meio, menor, contra as maiores externas. O trecho da menor que ultrapassa um buraco da maior forma uma espécie de bolsa que deixa as tainhas aprisionadas. O pano quadriculado maior serve como uma estrutura de auréolas para muitas redes de caçar borboletas que se formam com o pano menor. O arrastão até a praia leva tempo e exige esforço.
As “lesões” nos tecidos da rede vêm dos enroscos durante o arraste e da coleta dos peixes emaranhados nas tais bolsas de rede. O embaraço é tanto que só a faca resolve.
A divisão das zonas de pesca da praia entre os donos das redes é muito bem definida, assim como a repartição dos peixes. Os donos da rede ficam com a metade da coleta. O vigia, barqueiros remadores e os puxadores ficam com partes proporcionais da outra metade. A pesca anual da tainha tem suas regras invioláveis.


**** “Retáio” ****

O banco em que estão sentados “tem mais de uns oitenta anos”, segundo seo Adriano. As tantas cicatrizes e o polimento envelhecido das bordas da tábua parecem desmentir o tom de deboche de seu dizer. Ao lado do banco fica um balde com agulhas de costura de redes de pesca e carretéis de linha de alguns diâmetros.

Seo Euzébio é perito com as agulhas: o carretel gira na areia da entrada do galpão e desenrola a linha que vai sendo atrelada ao instrumento com uma das mãos, enquanto a outra alterna as faces da agulha. Distribui os aparatos carregados de linha para os demais, dois de seus irmãos, dois filhos e um neto. Vai todo dia da semana ao encontro para o remendo da feiticeira. Sabe que é fundamental ao bom andamento do processo.
A vistoria minuciosa, mas nem por isso lenta, dos “panos” não deixa passar “buracos”. As braçadas localizam os defeitos da trama de linhas e persistem o dia todo curando o tecido da rede.
Canivete ou tesoura pendurado no pescoço, faquinha bem amolada apertada na axila ou nos lábios, os homens localizam os problemas e vão cortando e costurando fios com nós feitos com as agulhas até que certo buraco esteja sanado.
Vista e mãos não param de suturar habilidosamente as descontinuidades da rede a não ser para contar ou lembrar uma “estória” engraçada, uma piada ou para café, convocado pelas matronas das casas.
Seo Adriano conta que uma velhinha em depressão queria se matar com um tiro. Para não errar, perguntou a alguém o local certo do coração. A resposta guardada foi: - Fica dois dedos abaixo do peito. Quando Seo Adriano terminou dizendo que a velha foi para o hospital com um tiro no joelho, a gargalhada estourou. Logo voltaram ao trabalho.
Terminado o trecho do pano, os senhores decidem mudar e estiram outro trecho de alguns metros. Como são três panos de 600 metros de comprimento e 15 metros de largura (profundidade), em média, o trabalho requer uma boa dose de paciência, gosto pela coisa, assunto e dedos bem firmes e calejados pelos cortes do nylon. Algo nada difícil na família Alexandrino Daniel.

Adriano Alexandrino Daniel tem 80 anos. Seo Chico tem 82 e Euzébio Alexandrino Daniel tem 90 anos. Os filhos presentes têm cerca de 60 e o neto, em torno de 40.
Os três irmãos trabalham na pesca desde crianças. No início, quando Campeche não passava de uma vila longínqua, era apenas para comer. Depois, adultos, tornou-se uma renda extra. Mantiveram outra profissão, aposentaram-se e nunca deixaram a paixão.
A companheira de longa data de seo Adriano convoca com firmeza para o café da tarde. Seo Chico vai para sua casa. Seo Euzébio nos acompanha para o café com leite com pedaço de polenta. A conversa é pouca. Estão voltados ao trabalho.
De volta ao rancho, pergunto se gostam de vinho. O consenso afirmativo é um alarido. Ofereço para trazer vinho numa outra tarde, comprometo-me. Permanece o desejo de reencontrar aqueles homens no ofício, no rito silencioso da família de pescadores.
Costuram todos os anos as redes de memórias, cultivam a mente e o corpo em atividade delicada e tecem, na ação, motivos para uma vida sábia. São artífices de sua longevidade, retidos nos panos serenos de uma vida humilde.
Ao contrário das tainhas, deixam-se levar pela rede e tratam o inevitável com arte magistral.

****Gosto****

Sandálias de couro marrom sobre as meias bege, calça jeans azul marinha, malha branca sobre camisa azul clara de manga curta sobre camiseta cinza-escuro com um buraco abaixo da gola. Boné branco e azul de alguma peixaria. O bigode branco imbricado no rosto. As bolsas dos olhos caem levemente deixando à mostra a carne rosácea do verso das pálpebras inferiores. Juntos aos olhos claros, compõem o olhar profundo de Seo Euzébio.
Ao notar meu retorno, sua voz é baixa e pausada:
- Uhmm! Já tô sentindo o gostinho do vinho.
Os cumprimentos são orais. As mãos não interrompem o trabalho obstinado.

O trecho do “pano” está esticado por um gancho a um abacateiro e os senhores trabalham de pé. Começam às 8 da manhã, pausam para o almoço e continuam até às 4, 5 da tarde. Todos os dias da semana até que a fabulosa rede feiticeira esteja com seu quadriculado totalmente reconstruído, o que levará perto de dois meses.
Um outro filho de Seo Euzébio está presente dessa vez. É João. Além deste e dos irmãos, o neto pescador, filho de uma filha de Seo Euzébio, continua na lida. Imbatíveis na execução dos retalhos, os irmãos procuram trabalho, consertos para o arrastão bem sucedido do próximo ano. Remendam o presente para receberem as tainhas vindouras. Aos “pontos” pacientes, trabalham para o futuro bem preparado.
Escorre pelos descendentes da árvore genealógica dos pescadores um gosto pelo ofício; um visco de serenidade recobre o trato com as pessoas. A conversa sobre a pesca da tainha com o neto é tranqüila.
Os goles de vinho são tímidos se comparados ao entusiasmo da sugestão. Apreciam a bebida, mas conhecem centenas de casos de alcoólatras e desventurados. Molham a goela, controlam o “trago” e preferem o trabalho sóbrio. Sabem dos perigos das drogas e parecem não padecer de angústias que levam ao consumo desmedido de álcool. Não têm do que fugir...
Quando a assunto é política, os ânimos esquentam e as discussões colocam João e seo Chico em oposição. O manuseio fica atrapalhado.
Comparam os preços do litro de gasolina, reconhecendo-os um bom parâmetro da economia e da cadeia produtiva.
O mundo cabe numa tarde de corte e costura, nos remendos de uma rede feiticeira para a pesca sazonal da tainha no Campeche.
Enquanto seo Euzébio ajuda o neto no retalho de um buraco complicado, abrindo o pedaço destroçado, seo Adriano volta depois de um longo tempo dentro de casa, e retoma o ofício sem soltar uma palavra. Procura os buracos e retifica os quadriculados como se tentasse tirar o atraso, como se estivesse em débito com o pacto familiar silencioso.
Preocupado em abastecer-me de conteúdo, seo Chico conta estórias da região e detalha episódios da história brasileira com uma memória intacta e uma mente sã aos 82 anos.
Entretanto, ele não se deu conta de que o ritual que transcorre naquela tarde e que perdura por dezenas de dias é, por si só, mais do que assunto suficiente. É um tratado de habilidade para enfrentar a vida, uma lição de persistência de membros de uma família com um objetivo comum. Uma obra de arte encenada num quintal, a céu aberto, composta de movimentos lapidados pelas intempéries de décadas de vida em sociedade e de pesca. Um monumento vivo em que ação e recompensa fundem-se e ensinam a serenidade adquirida. Um patrimônio da raça humana.

*****Carona****

Quando deixei seo Euzébio em frente a sua casa, depois de um trajeto de conversas calmas e mágicas, e durante o qual me dei conta da relíquia que estava “transportando”, o senhor de 90 anos disse:
- Cresça e apareça, rapaz!
O que será que significa? Talvez seja uma retaliação pela “invasão” do ritual familiar. Talvez, um enunciado qualquer que lhe veio à mente na correria da despedida? Estávamos numa rua movimentada, e enunciara uma frase de efeito para o jovem inocente? Talvez, uma frase enigmática, carregada de significado a ser desvendado? Talvez tivesse falado ao meu espírito: só quando crescer aos solavancos de uma juventude poderá aparecer de maneira completa e serena no mundo?
Certo é que a figura detalhada de seo Euzébio e a sutura familiar da “feiticeira” cresce, toma conta da mente e aparece, recompõe-se em texto, esse tecido de palavras que ousa capturar algum significado. Muitos devem ter fugido...


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15.8.06

Domingo de rede varandado

Varanda

É fora
E dentro,
Abrigo e mundo,
Largo e fundo.
Mato e rede
Balanço
Do si em tudo
É berro e zunido,
Visão
E cabresto,
É brisa
E fejão fresquinho.
Arvoredo
E baiano assentado
Pestana
E pesadelo.
Ronco e coxixo
Bronca
E resmungo
Sombra
E respingo
É palco
E purgatório
É lama
E vaso,
Mãma e cachaça
É papo e sermão,
Namorico
E ralação,
Encontro e fuga,
É gravata
E samba-canção
Memória e vastidão
E dentro
É fora.
Varanda
E mais não.

Felipe Modenese
14-08-2006

3.8.06

Manhã de Sol Matutino no Campeche, Floripa

Suspensão

Fiapos de Poeira
No ar frio do domingo matutino
Revoltando nos faixos de luz venezianos
A brilhar e driblar em pendor
Despropositado

Carregam o movimento
Silencioso
Do dia intruso

Efeito

Memórias, vida, universo

Bagunçadas dos passos,
Cenas viventes
Trespassam
As tramas do eu

No terreno caminhado,
Aos vórtices em vértices,
Lembranças,
Incluso as planejadas,
Reverberam no universo-

Sentimento em Suspensão

Felipe Modenese
30-07-2006

28.6.06

Brecha promocional


Calo

Semeados na lavoura do tempo, comprimidos sentimentos eclodem em contexto favorável, necessários ao concreto esfolhear de uma natureza inalienável, enquanto Tamires deixa o fogo ferver.
O pó acomoda-se em ruínas e o sumo desterrado preenche a espelhada face aos pingos na madrugada enfraquecida.
O indicador leva a xícara até a boca aberta e o gole fervente recolhe o olhar pasmado no azulejo bege. Aperta os olhos e o liquido preto fervilha goela abaixo:
- Caralho, puta merda, porra! – num ato reflexo.
A língua queimada pressiona o palato de Tamires e as terminações nervosas escaldadas alarmam o sistema proprioceptivo, mas em vão. Como tantas outras sensações, as informações de injuria não afetam a consciência. Resvalam sem surtir efeito, como os galhos do sertão no couro sobre a pele cangaceira.
Repressão calejada ao longo de vinte e cinco anos de luto persiste sob o robbie azul-marinho muito bem enlaçado, arrochado na barriga, e nos dedos retesados dos pés em macias chinelas brancas, enquanto a Dona busca sua correspondência na caixa do quintal.
O verde do jardim descuidado não passa de uma sombra na retina quando Tamires transpõe o carnê de IPTU para trás dos envelopes e estanca o passo arrastado no concreto: uma lucidez jamais experimentada transborda a depressão.
Como lava escorrente, um plasma de interesse subitamente recobre as trivialidades do amarelecido mundo (tal qual placas de tártaro), e um sentimento de completude esfolheia no espírito de Tamires quando descobre a unicidade das imagens daquele papel: a queima de estoque de tevês de tela plana das Casas Bahia...

Felipe Modenese
Oficina CPFL 24-06-2006

22.5.06

CAMINHO DA LUZ

“A tela deve ser fecunda. Deve criar um universo onde, pouco importa, divisarmos neles flores, personagens, cavalos, contanto que revele ao mundo algo vivo.”
Joan Miró

“É a esse vivo que parece aspirar à pintura de Miró. Isto é, a algo elaborado nessa dolorosa atitude de luta contra o hábito e a algo que vá, por sua vez, romper no espectador, a dura crosta de sua sensibilidade acostumada, para atingi-la nessa região onde se refugia o melhor de si mesma: sua capacidade de saborear o inédito, o não aprendido.”
João Cabral de Melo Neto - amigo de Miró


Iaiá, Gló, Ioiô, Nana e Newsom vestem de palmas de mãos as pálpebras fechadas e caminham no desfiladeiro entre a palavra e o que de fato ocorre.
Por sorte, os ônibus não passam ali por perto e podem deixar o comodismo engavetado, a força do hábito exilada e vestir não-gravatas ao passeio borboletesco do dia. Desfilam no desfiladeiro sem achismos.

III


Pedra Dourada – Faria Lemos

Cidade pequena

Na praça de Farinha ao Menos,
Destroços de lemos e remos
Arpejam a jangada chegada
Toda esburacada de pedra dourada

A cidade faria, lemos
No parquinho da central ,
Destroçado,
Bons cidadãos se, ao menos,

Pendurasse cadeiras na corrente do balanço
(Cujos halos remanescentes oscilam em fase,
Assim como os cidadãos, em fase...
De jogar conversa fora
De segurar, sem questionar,
O queixo caído
De tanta emoção),

Prendesse tábuas de assento
No sobe-desce da gangorra
(Que nem sobe nem desce:
Permanece...
Inclinada como uma ponta enferrujada
Ao ar
E outra enterrada no liso da areia,
Aplainada pela chuva,
Sem ser brincada,
Enfiada na areia, inerte ao tempo,
Que, aliás, teima em não passar
No lugarejo enterrado na serra,
Num Sossego tremendo,
Sem pressa de mudar),

Colocasse o disco no eixo do gira-gira
E girasse, apenas girasse...
(Como o que sabe não poder decolar,
Mas interessa-se em conhecer
As redondezas do lugar de brincar
E brincar
No mundo tão pequeno
Panorâmico
Sujando-se da beleza do local
Girando
Humilde, mas consciente
De fazer parte de um projeto maior
E deixar a conformidade ignorante)

E acertasse o movimento basculante
Do brinquedo sem nome
(Assim como esta gente praça,
morando na paz de graça.
Gente evoluída que só:
Conversa e deixa o tempo passá,
Sem muita questão pra colocá,
Além de questioná se o tempo vai virá,
E se não tem mais o que fazê pra mó
De fazê a gente daqui dorá mais um tiquinho).

10-01-2006

IV



Faria Lemos a Carangola

Ciscos

As sombras de mãos duplicadas
Vêm das lâmpadas do poste com hastes encurvadas.
Brincam no papel enquanto
Jovens digitalizam suas vidas em fotos
Jogam baralho sob colunas de mármore
E decidem namoricos nas muretas da arvore.

10 minutos antes da última hora,
Vem a força aprisionada nos cristais do caminho,
Aglutinada com a calma das eras
E protegida sob copas de cerca viva e espinho:

A serenidade da natureza,
No embalo dos gritos de insetos,
Grilos, cigarras e sapos ritmados,
Aflora , desterra a beleza

Ciscos nos morros de mata salpicada
Não incomodam, mas botam pra fora,
Fazem chorar
O serpenteio do rio Carangola,
Um segredo na alma e no fundo dos olhos,
Uma estória:

O buxo rasgado da cordilheira
Pelo facão dos tropeiros,
A enxada dos cafeeiros
E os cascos do gado barranqueiro
Desfolha suas entranhas
Em lâminas encr(u)ist(r)adas
De terrena sabedoria:
Brilham a luz que colhem
Brincam com as energias que em si dissolvem
E ensinam como dar luz a um caminho:
Brilhar de amor por detalhes
E brincar o caminho em harmonia.

10 e 11-01-2006

26.4.06

V


















Carangola a Espera Feliz

Glória de Viver
A Glória

No caminho da luz, às cegas,
À sombra de avencas molecas
E de conversas mais que sinceras,
Sob prantos de bromélias aéreas,
Películas de mica embrochuradas
Projetam os cantos de pássaros
Em tábulas rasas de aflição
E ouvidos descrentes de visão.

Passo a pássaro,
Poucos tropeços vacilados,
Buracos violados
E paisagens exuberantes,
Excitadas em voz,
Compõem um mapa na mente
A partir de cristais excertos da infância,
Galhetos e gravetos arrancados
De cipós e brinquedos truncados;
Tal qual o teneném
Usa o pouco além
Para criar algo encantado:
Um lar dependurado
Nos fragmentos naturais maturados.

Ali a cria resplandece
E a alma em flor se banha,
Podendo tocar a própria tua;
Talvez guiá-la a um caminho iluminado
Por demais batalhado
Delineado pela essência nua.

Faz do construído um santuário,
Emaranhado claro de sensações,
Abrigo à paz e vida,
Breve, entretanto, às claras.

Tão familiar ao mundo,
Percorre-o de vistas fechadas;
Heroína de si mesmo,
A mulher revigora a força vivente,
Enlaceia a vida como um presente
E galopa a terra enferma
A recolher cíntilos de prazer,
Desejos de caminhar e viver.

Vê o que ninguém pode e
Explode em risada que sacode,
Afugenta o medo ausente
Com rugido de amor por entre os dentes,
Infiltrados pelas vilosidades da alma.

Constrói dos toques, gostos, cheiros e sons
Emaranhados um ninho no infinito suspenso:
Um lugar de viver encanto,
A Glória de viver aqui e agora.


11 e 15 - 01-2006

25.4.06

VI


Espera Feliz a Alto do Caparaó

Mucoviscidose
A Túlio

Os olhos lacrados
Percorremos
Trajetos obstinados
Definhamos
Sem atentar ao tentar
Fechar os olhos
E seguir os próprios passos
E os passos próprios.

Eis que gotas caem
Sob o peso da gravidade
E pingam no cruzamento
De diagonais:
Dispor-se e serenar-se.

Caem como líquido amniótico
Rápido
De um mero gestar
Esmero

Pálpebras cortinam
O perambular
Arrastando consigo
A chuva do mar;
Agora,
Só o caminhar
Simples como o oceano
Extenso a brotar.

A vista espera
Os olhos cerrarem-se
E experimenta
As asas abrirem
Antes de secarem
Aos sopros quietos;
Como uma borboleta,
Tomam consciência
Da nova envergadura
Prestes a voar.

E
Ainda escorre um muco viscoso
Da gestação da alma,
Quando o corpo fecha o olho vagaroso
Ao olhar dos pés a palma;
Bater as pálpebras
A um mundo novo
Voar as pernas
Por um caminho povo
E alçar a mente recém-despida
Ao destino tortuoso
Mas pleno
...
Aahh!!!
Isso, ao menos!

17-01-2006

20.4.06

VII


Alto do Caparaó ao Pico da Bandeira

Dádiva em fragmentos condensados

“O tempo é a dádiva da eternidade” – William Blake
“A totalidade do ser é impossível para nós. Assim, dão-nos tudo, mas de forma gradual.” - Jorge Luis Borges

Ao nível de nuvens soltas,
Cabelos ao vento ar puro
Serpenteiam livres de apuro
A captar sensações amorfas

Dobraduras sem fim
Entremeadas de rotas-minhocas
Laranjas, bradam por mim
E mostram o mundo sem tocas.
Toques de deus por entre fiapos
Iluminam do caminho da luz o fim
E traçam fugas aos aliados
Por um mundo melhor enfim.

Vapores do desespero
Anunciam o esmero
Por um trato sereno
A um perfil pleno.
Como um tato de glória,
Os olhos percebem o meio
E tocam tanta bandeira
Que descascam um país brasileiro
Fértil
Vigoroso
Viçoso.

Subir mais alto só pra ver
O vento rugir segredos
Nos ouvidos cegos
E despertar a fúria de viver,
Soterrada no dia-a-dia,
Embriagada no formol da rotina.
Encurralada, agora pulsa,
Ganha superfície e volume
Fagocitando beleza crua,
Expandindo o limite, incólume
Ao tão que lhe invade
E inspira a liberdade.

Brilha o país
E o planeta inteiro
Do Pico da Bandeira
Em suspiros de vitória
Por um caminho trilhado
Rumo a um eu herdeiro
De um desejo descabido
De viver tudo primeiro.

Cada passo
Todo o passo
Passo todo
Calculado em descalço,
Ciente do caso do descaso,
Revigorado ao máximo
De eterno retorno
Enquanto dura o passo
Derradeiro,
Mas passo a passo.

Tons de uma terra sui generis
Aquarelam o precioso
Nos olhos febris
Do espírito ocioso.
E abduzem,
Como as lâminas da eternidade
Nos fazem com o tempo,
Expondo fragmentos da totalidade,
Sombras coloridas no gradual
Condensadas no limite do real.

Ímpeto vital,
Presente,
Pluma da passagem do tempo,
Passa tempo
Anda
Caminha
Permanecendo no fugaz,
Ardendo de viver
Agora.
Assim como a luz
Que arde e caminha
Ao belo, infinito e eterno do agora
Em seu caminho, que nunca acaba.

13, 19 e 20 - 01 - 2006

17.4.06

Recre(i)ação

A realidade é a construção de dada comunidade, tentando tornar o mundo inteligível. Por isso a literatura refrata esse real e, ao mesmo tempo, faz refletir sobre a consistência do real, sempre relativo e conjetural. É o mundo mesmo que solicita e suscita o poeta em nós. Um poema, um romance, são formas especiais de conhecimento do mundo humano; modos de transfigurar a experiência, no esforço de lhe dar a densidade de um sentido. Ponto de intersecção entre mímesis e poiésis: o barro e a mão do oleiro; na circulação das palavras, a seleção singularizada no poema – corpo novo que é imagem da permanente recriação do mundo.

Extraído do Ensaio "Mímesis e Poética: entre criar e imitar
de Lourival Holanda
(nº 62 da Revista Continente Multicultural- fev.2006)

12.4.06

Poesia atual - artigo


Palavras criam realidades
A ampliação das formas de representação estética tem como corolário uma outra visão da realidade. Toda mudança de paradigma provoca o entusiasmo e o desconforto, a apologia e a negação furiosa

Por Claudio Daniel
Paul Valéry, em conhecido ensaio publicado em 1939, estabelece uma distinção entre a prosa e a poesia, afirmando que a primeira assemelha-se ao andar, e a segunda ao dançar. Estas imagens remetem ao caráter mais utilitário da prosa, onde importam a clareza e o sentido, enquanto na poesia contam mais o andamento rítmico, a construção de paisagens, a estranheza vocabular e sintática, o trabalho com a metáfora e outros recursos lingüísticos, que atribuem ao texto seu valor artístico. Na prosa, está em primeiro plano a função comunicativa, conforme o conceito de Roman Jakobson: o que vale é a informação, e podemos pensar aqui num manual de medicina, num código jurídico, num tratado de filosofia ou em livros de sociologia ou contabilidade. Já na poesia, onde o artesanato semântico é ele mesmo a informação a ser transmitida, temos a função poética, o sentido construído pela forma. Sem dúvida, essa distinção entre prosa e poesia admite exceções: obras como o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, as Galáxias, de Haroldo de Campos e o Catatau, de Paulo Leminski, são textos em prosa permeados de poeticidade, numa voluntária superação de dicotomias, sinalizando também a dissolução das fronteiras entre os gêneros. Por sua capacidade de fluidez, simbiose e mutação, a poesia relaciona-se com outras formas de escrita, perturbando-as, criando uma instabilidade textual, distante de qualquer idéia de imobilidade ou permanência. Sendo um pouco mais audaciosos, podemos pensar na poesia além da própria literatura, manifestada na canção, no balé, na pintura, no drama cênico, enfim, em todas as criações onde a linguagem está enamorada pela linguagem. Tudo é a arte da poética, de certa forma, quando o dançarino, a dança e o dançar são um único e inquietante movimento. Como afirma Antonio Risério, em seu Oriki Orixá, a poesia não se restringe ao código escrito, inclusive por ser anterior a ele: os primeiros poemas de que temos notícia pertenciam à tradição oral (como os mitos fundadores indígenas, africanos ou escandinavos) e eram transmitidos na forma de canto, com a colaboração da música, coreografia, vestuário, mito e símbolo: arte mágica, onde cada palavra não era apenas a representação de uma coisa e, sim, a própria coisa, na forma de som. Não se tratava de imitar, mas de criar realidades, numa síntese entre estética e teurgia. Disso resulta o caráter sagrado, de invocação, dos mantras indianos e dos orikis nagô-iorubás: ao pronunciarem o nome de seu deus, este era corporificado como vibração sonora (o que hoje chamaríamos de isomorfismo, o conteúdo igual à forma). O caráter mágico ou encantatório da poesia, sem dúvida, estava relacionado a formas de pensamento analógico e ritualístico, mas podemos ver suas irradiações em toda a evolução da escritura poética, que nunca renunciou à vocação taumatúrgica de construir universos “com sua própria fauna e flora”, no dizer do poeta chileno Vicente Huidobro, protagonista do criacionismo. Coube às vanguardas históricas, aliás, a recuperação da visualidade, do gesto e do movimento na poesia, aliando a pesquisa fônica a toda sorte de recursos expressivos.
Quando se censura a vanguarda por seu suposto hermetismo ou obscuridade, os anátemas são aplicados à sua “extravagância” formal, mas também a sua “ausência de conteúdo” ou “alienação” (para recuperarmos uma acusação de heresia habitual nos anos 60 e 70). Os poetas experimentais estariam distantes da “realidade” e do “mundo”, isolados em modernas torres de marfim. Caberia perguntar, aqui, quais são os conceitos de “realidade” e de “mundo” defendidos por esses críticos, e que estão na essência de textos literários de imediata compreensão, mas escasso valor artístico. Para os acadêmicos de formação sociológica, discípulos do modelo desenvolvido por Luckács, a realidade é um fato imediato e objetivo sujeito à investigação científica, enfatizando aspectos econômicos ou sociais, dentro de uma linha histórica evolutiva. Essa concepção, que dominou o cenário europeu nas primeiras décadas do século passado, está eivada de certo determinismo (diríamos até fatalismo) que considera todas as criações intelectuais ou estéticas como subprodutos da cadeia produtiva. A partir dessa visão, de indiscutível miopia, surgiram propostas como a do realismo socialista, que intentou ser o “espelho do real”, refletindo as injustiças do capitalismo e projetando, ao mesmo tempo, a futura redenção socialista (considerada inevitável, dentro de uma perspectiva retilínea e darwiniana da história).
Na literatura brasileira contemporânea, essa expansão do sentido pela construção inusitada ou excêntrica é visível em autores como Horácio Costa, Wilson Bueno e Josely Vianna Baptista, precedidos pelo Haroldo de Campos de Galáxias e dos estudos sobre o barroco. Em seu livro A Arte no Horizonte do Provável, o poeta paulista fez uma interessante distinção entre a abordagem diacrônica da literatura, baseada num fio evolutivo histórico, e a sincrônica, que busca relações de proximidade entre autores de diferentes períodos epocais. Esse é o método que utilizou em seu estudo “Uma Arquitextura do Barroco” (em A Operação do Texto), que aponta afinidades entre autores tão diversos como o cubano Lezama Lima, o grego Lícofron, o brasileiro Sousândrade e o chinês Li Shang Yin, distanciados na geografia e no tempo regular, mas muito próximos em seu ostinato rigore e capacidade imaginativa. Essa aproximação, que a princípio pode parecer arbitrária e impulsiva, é fundadora de uma concepção literária e filosófica que animou os autores mais inventivos da América Latina, a partir dos anos 70, dentro dessa vertente que se convencionou chamar de Neobarroco. Num poema como “O Napoleão de Ingres”, de Roberto Echavarren, por exemplo, temos uma collage de signos de diversos territórios e culturas, apontando a mestiçagem, a impureza, o paradoxal e o ambíguo como elementos constituintes de nossa realidade: “A cor da seda, sua textura / são quase metálicos: um zepelim no céu / azul-da-prússia, um dragão chinês / voando em seu troar de metais”. Essa mescla de elementos díspares remete à própria formação social e cultural latino-americana, que cozinhou no mesmo caldeirão signos e referenciais europeus, asiáticos, indígenas e africanos, numa antropofagia que perdura até os dias de hoje. Além da diversidade, a desigualdade da convivência entre tecnologia e subnutrição, crescimento industrial e miserabilidade, erotismo e religião, entre outras manifestações contraditórias do nosso continente, colaboram com o conceito do Neobarroco e sua visão de um mundo plural, irregular, multifacetado, sublime e trágico.
(texto incompleto publicado na Edição Nº62- Fevereiro de 2006 da revista Continente Multicultural)

31.3.06

Exercício

Passei(-)o Passado

“O tempo é uma dádiva da eternidade” – Paul Valèry

Cachos bojudos de uma pequena árvore denotam quase tudo. Passeio. Passei-o sem vê-lo. Sem notar seu microcosmo:
Cachos em flores e frutos. Esparramados na curvatura da copa.
Flores túrgidas de pólen e polinizadas e frutos assementados. Além de uma variedade rica de estados intermediários. Etapas num continuo processo de metamorfose.
Vida.
Rasgados, abertos, hirsutos languidamente. Costurados, lacrados, pasmosos de natureza.

Meus pés catatônicos pararam e fitaram por necessidade.
Mil e um polinizadores revelam sob a sombra da correria cotidiana: mangavas, moscas varejeiras, percevejos, formigas, borboletas. E as flores e frutos. Agentes transformadores da situação, instintivamente. Dinamizam ações imediatas no organismo árvore. Pululam. Insetos espreitados seguem seu rumo caçoando da tentativa de tornar palavras o sistema vigente. Gozam com seu zumbido da pretensão humana. Zzzziiiiiii...
Nutrem-se de um visco oleoso e sintetizado na máquina árvore. Filtro divinizado no tempo. Glorificado pelas intempéries.

Como deixar de notar o silêncio infinitamente ativo de uma pequena árvore, florida de boas-vindas ao Outono. Cuspindo semente e pólen, um pó lento, uma nuvem que deixa a visão turva de emoção, uma medusa aos pensamentos. Pó lento revelado por poucos feixes de luz que dão contorno a nuvens no céu matutino.
Os pés descalços, num caldo de folhas caídas - não mortas - mergulhados numa travessa de grama verde pontiaguda, ainda suadas da respiração noturna. Como espadas de verdura, sangram o silêncio de uma noite transcorrida.
Insetos frenéticos e calmos buscam... percorrem um estame apenas ou a copa inteira. Pés molhados de um melaço do tempo.

Entro na árvore como quem procura causar a menor perturbação possível numa laguna glacial enfiada entre picos dos Andes ou o menor desmoronamento possível em dobraduras de areia nas dunas dos Lençóis maranhenses.
Sob a copa, como de dentro de uma oca, notam-se os movimentos infinitos, a intimidade da dinâmica de uma copa de árvore, de uma aldeia em extinção. Por frisos de galhos e flores, movimentos rápidos e lentos, frêmitos. Com seus rituais, sua pouca roupa, suas tintas, cocares e adereços, a tribo sui generis agarra sua tradição.

Não se pode resistir à tentação de abraçá-la, enfeitiçar-se de tanta nervura, de tamanha alvura, de algo tão vivo sem lambuzar-se todo e grudar em si um pó lento, uma descrição íntima autentica e espontânea: a minha polinização de emoções, reverberadas em palavras da indiferença do mundo todo.
Sim, estou incrustado de pólen. E esparramo-os aqui, por necessidade. Como o pintor raspa o dedo de tintas na lateral da palheta, ou o padeiro que esfrega as mãos na quina da bancada, ou alquimista que espreme suas mãos de pólvora em panos de algodão, ou o padre que toca os cantos da boca lambuzada de farelos e uva, ou ainda o físico que glorifica suas equações e símbolos enigmáticos na largura do quadro. Esparramo rápido. Para poder agarrar de volta meus instrumentos de lógica cartesiana (mesmo que seja a da física quântica), precisão matemática, erudição invejável e escrotice inalcançável... Um inseto absorto em incompreensão expelida em termos, palavras, poesia...
Talvez, as palavras sejam mesmo isso: incompreensão. Fuga de uma emoção eterna. Não suportamos o eterno. E por isso, foi-nos dado o tempo! Necessidade.
Ajoelho diante do caule, franzino e robusto, abraço a árvore... Rezo.

Felipe Modenese 25-03-2006

21.3.06

Farpas do território solidão

Raspas de Rilke

Solidão
Suportada,
Vida,
Desriscada da filogênese
Traço curto
No cristal da criação
Raspas do halo
Turbilhão
Do encontro dos veios
À margem da escuridão
Limite espiral,
Desconcerto de inquietude
Contínua e silenciosa
Solidão

BIU
16-03-2006
Meu território (1998)

Como um inseto
livre sujo
eu rastejo
procurando na superficíe redenção
sob pressão eu misturo
as palavras honestas
elas não mostram o que eu sinto
só demarcam meu terrritório
sujo livre
das suas sujeiras que não são minhas
mas que carrego nos meus pés
que demarcam meu território
longe de você só há uma saída
que não procuro só achando
nos meus sonhos feitos de sujeira
e liberdade
eu me revelo doce
quando você instiga a violência
que existe
sob meus pés
sujos e fracos
e que não pedem descanso
para serem limpos
sonho com você quando sonho comigo
e estou sozinho
novamente
procurando
por você
nesse espaço
já marcado por
mentiras
suor
e lágrimas
que não são
suficientes
para limpar
meus pés
Du Gil

18.3.06

Diálogo (nada despretensioso) de uma vida

- Se você colaborar - ele disse - poderá pedir tudo o que quiser ao Senhor das Inclemências
...
- Imortalidade? Uma eternidade toda com essa serpente fodendo o meu coração? Uma eternidade cheia de medo, de falta de ar, de arritmia cardíaca? Nada feito.
- Você diz porque não conhece a outra alternativa.
- Que outra alternativa?
- O fim comum dos humanos. A morte. Você entende a morte? Já se imaginou morto alguma vez?
-Já que tocamos no assunto, acho que vou me suicidar assim que sair daqui.
- Não, você não vai. Você vai continuar agarrado a essa vida que você detesta, porque no seu coração, nesse mesmo coração pequeno, companheiro de gruta de uma cobra, você sente que essa vida é a única que existe. Depois vem o nada. Entropia de céluças, rendez-vous de vermes, nada de consciência, nada de memória, nada de nada, finito. Kaput. The end - ele compassava as palavras com pequenos socos no braço da cadeira. - Não lhe parece que uma eternidade cheia de medo, por pior que venha a ser, é preferível a uma eternidae cheia de nada?
- Estou pensando se vale a pena pedir minha parte em dinheiro.
- Como preferir.
pág. 54 "Síndrome de Quimera" Max Mallman

2.3.06

O literário nada do real

Papéis em branco (1997)

Fechem as cortinas
celebrem o fim
não temam
não há mais nada a fazer
nada a dizer
não há mais jornais
não há mais bíblias
não há mais mais
apenas o nada
alimentando-se do vazio
hoje é o dia que sempre foi
sem nunca existir
vamos sentar e apreciar a vista
pois nossos olhos não mais vêem
apenas sentem
nosso corpo em estranha modéstia
curva-se diante da própria sombra
tornando-a real
agora a lei é única
agora a lei não é
as palavras não são mais necessárias
agora sabemos o caminho de casa

Eduardo Gil


o lamento (1989)

O lamento da literarura com seus gorjeios e trinados, percorrendo a escala das emoções. É um vento aventureiro desfazendo tranças e arreliando rendas delicadas. A delicadeza de certas mãos que em sonhos tocam a imaginária cintura do sonhador iludido e no final compõem pontes de absurdo sentido entre imagens soltas e acabadas. Tontas cavalgadas por prdarias absolutamente inconcebíveis - e o real se retira humilhado perante o referido inatingível esplendor. Secam gerânios, begônias e nardos. A ordem é revisada. O caos dos corpos a sós. Certas formas se acentuam, procuram-se para grifar-se e, ao coincidir consigo mesmas, sucumbem ao júbilo de se sentir indescritíveis. Prodígios da metamorfose imperceptível!

em Poros ("Language is a virus from outer space"- Burroughs)
de Rubens Rodrigues Torres Filho

21.2.06

Largura na Amizade

A( )barca

"E só ficara comigo
o riso rubro das chamas, alumiando o preto
das estantes vazias.
Porque eu só preciso de pés livres,
de mãos dadas,
e de olhos bem abertos."
Bibliocausto - livro Magma
Joao Guimarães Rosa
“Viver para ser admirado pelos outros cria apenas fracasso e frustração"
Heróis de verdade - Roberto Shinyashiki

Parte a barca
Branca
Deixa larga
Embarca
Na largura
Arca
Larga

Não deixa a barca
Abarcar
A marca
E largar ao largo
Amarga
Alarga

Barca Furada
Rasga tecido
D’água
Arrasta
Aparta o broto novo

Surfa a barca
Um jeito povo
Barqueja
Arpeja
Ritmo
Encarna

Seja barca
Em barca
Forma nova
Embarca agora
A barca do eu
À barca do outro
Alarga a largura
Barca

Felipe Modenese
19-02-2006



Para que serve um amigo?

Milan Kundera, em seu livro “A identidade”, diz que a amizade é indispensável para o bom funcionamento da memória e para a integridade do próprio eu. Chama os amigos de testemunhas do passado e diz que eles são nosso espelho, que através deles podemos nos olhar. Vai além: diz que toda amizade é uma aliança contra a adversidade, aliança contra a qual o ser humano ficaria desarmado contra seus inimigos.
Amigos recentes custam a perceber essa aliança, não valorizam ainda o que está sendo construído. São amizades não testadas pelo tempo, não se sabe se enfrentarão com solidez as tempestades ou serão varridas numa chuva de verão.
Um amigo não racha apenas a gasolina: racha lembranças, crises de choro, experiências. Racha a culpa, racha segredos. Um amigo não empresta apenas a prancha. Empresta o verbo, empresta o ombro, empresta o tempo, empresta calor e a jaqueta. Um amigo não recomenda apenas um disco. Recomenda cautela, recomenda um emprego, recomenda um país. Um amigo não dá carona apenas pra festa. Te leva pro mundo dele, e topa conhecer o teu. Um amigo não passa penas cola. Passa contigo um aperto, passa junto o Reveillon. Um amigo não caminha apenas no shopping. Anda em silêncio na dor, entra contigo em campo, sai do fracasso ao teu lado. Um amigo não segura a barra apenas. Segura a mão, a ausência, segura uma confissão, segura o tranco, o palavrão, segura o elevador.
Duas dúzias de amigos assim ninguém tem.
Se tiver num, amém.

Martha Medeiros

12.2.06

O gênio simples de mestre Rosa

Saudade

Saudade de tudo!...

Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de aalmas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa de fusão de tudo,
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano,
afogado no fundo de si mesmo...

Poema "Saudade" - livro "Magma" de 1936 -
mestre Guimarães Rosa

8.2.06

Visões

“Gostaria de dizer que penso nos humanos como fazendo parte de uma curva normal ou como a questão do limiar de dor. Se passarmos a existência a olhar de fora, ela fica pesada e insustentável, mas se passamos além disso, podemos atingir um tal grau de praticidade na existência que ela se torna leve e adaptativa. Acho que está perto das idéias do zen budismo. Nossa civilização ocidental separou mente e corpo e tornou a existência uma questão de luta e não de fluxo. O homem rico é aquele que está satisfeito com o que tem. Nossa sociedade consumista e competitiva vai solapando o gosto de simplesmente ser”
Glória Cintra - psicoterapeuta

4.2.06

Miró-Melo-Kafka-Koellreutter

“Fico agitado quando vejo, num céu imenso, a lua crescente ou o Sol. É por isso que em minhas telas existem diminutas formas em grandes espaços vazios.”
“A tela deve ser fecunda. Deve criar um universo onde, pouco importa, divisarmos neles flores, personagens, cavalos, contanto que revele ao mundo algo vivo.”

Joan Miró

“É a esse vivo que parece aspirar a pintura de Miró. Isto é, a algo elaborado nessa dolorosa atitude de luta contra o hábito e a algo que vá, por sua vez, romper no espectador, a dura crosta de sua sensibilidade acostumada, para atingí-la nessa região onde se refugia o melhor de si mesma: sua capacidade de saborear o inédito, o não aprendido.”
João Cabral de Melo Neto - amigo de Miro

A Partida
Dei ordem de irem buscar meu cavalo ao estábulo. O criado não me compreendeu. Fui eu mesmo ao estábulo, ensilhei o cavalo e montei. Ao longe ouvi o som de uma trombeta, perguntei o que significava aquilo. Ele de nada sabia, não ouvira nada. No portão deteve-me, para perguntar-me:
-Para onde cavalga o senhor?
-Não o sei - respondi -. Apenas quero ir-me daqui, somente ir-me daqui. Partir sempre, sair daqui, apenas assim posso alcançar minha meta.
-Conheces então, tua meta? - perguntou ele.
-Sim - respondi eu -. Já disse. Sair daqui: esta é minha meta.
Franz Kafka
(recebido de Eduardo Garcia Gil- Dú)


“A arte é uma contribuição para o alargamento da consciência do novo ou do desconhecido e para a modificação do homem e da sociedade. É necessário que a arte se converta em fator funcional de estética e humanização do processo civilizador em todos os seus aspectos. A função do artista deve ser a de contribuir para a conscientização das grandes idéias que formam a nossa realidade atual.”
Koellreutter

3.2.06

Religiosidade - vergonha e culpa

Revista Bravo: Foi mesmo a religião que salvou sua vida?

Seo Jorge: Eu não tenho essa relação de pecado e paraíso, de sair daqui para pagar não sei onde. Acho que a coisa é toda resolvida por aqui, mesmo. Se vacilar aqui, é aqui que tu estás fodido. Se acertar aqui, é aqui que vem a bonança. Talvez, se o Brasil tivesse sido educado nessa concepção — eu nem digo “religião” —, a gente tivesse mais mico leão dourado espalhado por aí. Mas fomos criados na concepção católica, onde é proibido, é pecado, é feio, é bonito, é com alma, é sem alma... deu essa cagada toda que está aí. Sou candomblecista sim, sou filho-de-santo pesadão como todo preto brasileiro é. Meus santos estão todos na atividade e se mexer comigo são três tambores comendo na cara. E não é papo de magia negra, não. É dança, é canto, é expressão, é sorriso, é gargalhada, é cerveja, é rango, é lombo de porco, é lingüiça de porco, é feijão, é fartura, é tambor, é todo mundo de branco! Todo mundo bem decorado, bem colorido. É cheiro de mato, cheiro de erva, é biodiversidade. Neguinho está perdendo, não sabe o que é.



Culpa e vergonha (Moralidade 1)
Em 2005, as CPIs escancararam atos de corrupção, apropriações indébitas, malversações variadas. A campanha eleitoral deste ano promete uma reprise e uma ampliação do mesmo espetáculo.
Mesmo assim, a impressão de muitos é que tudo isso seja apenas a ponta de um iceberg. É como se estivéssemos convencidos de que uma desonestidade endêmica compromete cada órgão vital do país, se não cada consciência.
Pagamos a dívida com o FMI, conseguimos um superávit primário e, quem sabe, com a inflação controlada e a baixa dos juros, a dívida interna diminua. Mas não há como festejar: o país nos parece sofrer de um déficit mais fundamental, que nenhuma política econômica sarará, um déficit moral.
Durante o século 20, aliás, muitos sociólogos e ensaístas brasileiros se debruçaram sobre esse déficit moral, perguntando-se como ele teria chegado a ser um "costume" nacional. Um costume, segundo a definição proposta por Tocqueville, é um hábito do corpo e do espírito, um hábito compartilhado por uma coletividade; ele dá forma a escolhas e atos de maneira, por assim dizer, espontânea, irrefletida.
É nesse contexto que dedico uma pequena série de colunas (seguidas, mas com possíveis exceções) ao funcionamento de alguns reguladores da moralidade em nossa sociedade.
Num livro famoso, "O Crisântemo e a Espada", de 1946, uma grande antropóloga americana, Ruth Benedict, tentou entender a sociedade japonesa.
Ela chegou a uma conclusão que se tornou clássica: há sociedades em que o comportamento moral é regulado pela vergonha (por exemplo, o Japão) e outras em que ele é regulado pela culpa (por exemplo, as sociedades ocidentais modernas). Em cada tipo de sociedade, ambos os afetos estariam presentes como motivações e deterrentes, mas um deles seria dominante.
Nas sociedades em que predomina a vergonha, o sujeito escolhe agir, se abster ou impor limites à sua ação para não perder a face e para preservar ou resgatar sua honra e sua dignidade. Nas outras, o sujeito age para evitar a culpa ou para expiá-la.
A ação moral concreta é parecida nos dois tipos de culturas. Por exemplo, em ambos, um sujeito moral não rouba, mas, no primeiro caso, ele não rouba para evitar a desonra que espera o ladrão; no segundo, ele não rouba para não se sentir culpado.
A vergonha parece ser um regulador perfeito para as sociedades tradicionais, em que, acima da lei, vigem os códigos de honra, a fidelidade ao legado dos ancestrais, o sentimento de uma missão simbólica da estirpe e da casta -ideais que permitem medir nosso valor e nossa dignidade.
A culpa seria o regulador das sociedades individualistas modernas, cuja origem está na idéia cristã de que o indivíduo deve pouco ou nada a seu passado e aos grupos aos quais ele pertence, mas é contável diante de um Deus que sabe tudo e, em última instância, julgará e punirá ou recompensará.
O Brasil de hoje é, grosso modo (voltarei a essa aproximação), uma sociedade ocidental moderna e fundamentalmente cristã. Na oposição proposta por Benedict, o sentimento que regula nossa ação moral deveria ser sobretudo a culpa.
No entanto, a sabedoria da língua sugere algo diferente: a malandragem "não tem vergonha na cara", "sem-vergonha" é uma fórmula tão corriqueira que se tornou um adjetivo hifenizado, assim como "pouca-vergonha" se tornou um substantivo e o mesmo vale para "cara-de-pau".
Em matéria de moral, nossa língua espera mais da vergonha que da culpa. E, ao estigmatizar a imoralidade, ela deplora mais a falta de vergonha do que a falta de culpa.
Apesar da idéia de Benedict, nossa língua tem razão, sobretudo porque a culpa, de fato, é um péssimo regulador moral.
À primeira vista, que a gente acredite ou não nas penas do inferno, pareceria lógico que evitássemos as ações que (como sabemos sempre de antemão) não nos deixariam dormir tranqüilos. Mas qualquer terapeuta sabe que não é assim: a culpa funciona como uma espécie de pagamento antecipado. Autorizo-me a fazer algo que me parece errado justamente porque sei que me sentirei culpado, e meu sofrimento futuro compra, desde já, o perdão para meu ato.
A Igreja Católica, quando instituiu o arrependimento e a penitência como condições da confissão, inventou um dispositivo extraordinariamente permissivo. Posso pecar quanto eu quiser, pois já me arrependo, sinto-me culpado, sofro e meu sofrimento me remirá.
É a mesma dinâmica que funciona quando pedimos desculpas: numa palavra só, admitimos que nosso ato é errado, prometemos que nos sentiremos culpados, e essa promessa nos garante o perdão. Com isso, podemos furar a fila e passar a perna, à condição de murmurar "desculpe".
A vergonha é um regulador moral muito mais eficaz que a culpa porque meu sofrimento por perder a face não repara minha honra. Enquanto a própria culpa absolve o sujeito culpado, a vergonha mancha, e sentir vergonha não restitui a dignidade de ninguém. A única cura da vergonha está nos atos futuros do sujeito.
Mas como funciona (ou não funciona), então, a vergonha numa sociedade moderna, como a nossa?
Continua.


CONTARDO CALLIGARIS (Folha de São Paulo, quinta-feira, 02 de fevereiro de 2006)

31.1.06

É vero!

APRENDENDO A VIVER...

Aprendi que se aprende errando
Que crescer não significa fazer aniversário
Que o silêncio é a melhor resposta, quando se ouve uma bobagem
Que trabalhar significa não só ganhar dinheiro
Que amigos a gente conquista mostrando o que somos
Que os verdadeiros amigos sempre ficam com você até o fim
Que a maldade se esconde atrás de uma bela face
Que não se espera a felicidade chegar, mas se procura por ela
Que quando penso saber de tudo ainda não aprendi nada
Que a Natureza é a coisa mais bela na Vida
Que amar significa se dar por inteiro
Que um só dia pode ser mais importante que muitos anos
Que se pode conversar com estrelas
Que se pode confessar com a Lua
Que se pode viajar além do infinito
Que ouvir uma palavra de carinho faz bem à saúde
Que dar um carinho também faz...
Que sonhar é preciso
Que se deve ser criança a vida toda
Que nosso ser é livre
Que Deus não proíbe nada em nome do amor
Que o julgamento alheio não é importante
Que o que realmente importa é a Paz Interior
E finalmente, aprendi que não se pode morrer, prá se aprender a viver...
(Carlos Castañeda)

"Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo,
qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim". Chico Xavier

e-mail enviado por Mariana Vieira

28.1.06

Segredinho

"O segredo de toda verdadeira arte está, talvez, onde a razão e a magia se tornam uma coisa só".
Herman Hesse (1877-1962)

25.1.06

Alvura de Rubem

Poesia
Por Rubem Alves (em uma introdução ao mês de outubro de uma agenda de 2001)

Poesia não é uma expressão do ser do poeta.
A poesia é uma expressão do não-ser do poeta.
O que escrevo não é o que tenho; é o que me falta.
Escrevo para me completar.
Minha escritura é o pedaço arrancado de mim.
Escrevo porque tenho sede e não sou água.
Sou pote.
A poesia é água.
O pote é um pedaço de não-ser cercado de argila por todos os lados, menos um.
O pote é útil porque ele é um vazio que se pode carregar.
Nesse vazio que não mata a sede de ninguém pode-se colher, na fonte, a água que mata a sede.
Poeta é pote.
Poesia é água.
Pote não se parece com água.
Poeta não se parece com poesia.
O pote contém a água.
No corpo do poeta estão as nascentes da poesia.
Não.
Não escrevo que sou.
Sou pedra.Escrevo pássaro.
Sou tristeza.Escrevo alegria.
A poesia é sempre o reverso das coisas.
Não se trata de mentira.
É que somos seres dilacerados.
O corpo é o lugar onde moram as coisas amadas que nos foram tomadas, presença de ausências, daí a saudade, que é quando o corpo não está onde está.
O poeta escreve para invocar essa coisa ausente.
Toda poesia é um ato de feitiçaria cujo objetivo é tornar presente e real aquilo que está ausente e não tem realidade.
“Like a bridge over troubled waters...”
O que escrevo é uma ponte de palavras que tento construir para atravessar o rio.

24.1.06

Dito e Feito

3 - Poesia e romance

Folha - O que você diria que alguém de 17, 18 anos deveria estar lendo agora para ter uma noção do seu próprio tempo?

Paglia - Poesia. O pós-estruturalismo privilegiou o romance. É no romance que as técnicas da desconstrução funcionam melhor. Com a poesia, não. E, para mim, o poema -o curto, em especial- faz muito mais parte da nossa época. O poema curto equivale a uma canção, que se escuta inteira no rádio, ou a uma pintura, que se pode ver isolada. Já um romance pode exigir duas ou três semanas de leitura, com um esforço especial de atenção para a linearidade das idéias. E esse tempo e essa atenção são cada vez menos disponíveis, mesmo para os jovens.Eu adoro os romances do século 19, mas não tenho entusiasmo pelo romance anglo-americano contemporâneo. Os últimos romances que li a sério foram [três grandes obras do modernismo europeu] "Rumo ao Farol", de Virginia Woolf, "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, e "Ulisses", de James Joyce, romances em que se percebe uma espécie de fusão entre poesia e prosa. Já o romance anglo-americano atual... O que é essa ficção, comparada à vitalidade que se vê por todos os lados, no cinema, na TV, até na internet ou em videogames?

Camille Paglia
em entrevista à Folha - caderno Mais de 10 de abril de 2005


tecnoplágio

A Terra parou?!?
Ou a web caiu...

07-08-2005