14.6.18

9 sóis a João

              
              9 sóis a João 
Filho João, o nascer do sol 9 brota a saudade em soluços. Choro a beleza de viver na sua ausência, que se finda. As bochechas sentem aguadas o frio de fim de maio, encobertas por uma pele de lágrimas puras, destiladas na presença de sua falta por 90 dias. As mãos vivem o frio ao registrar estas palavras do nascer do 9° sol, da cruz detrás do morro do Peru. Sinto e choro o belo.
O espetáculo de viver o colorir de tudo entorpece pelo infindável ao alcance dos olhos. Vislumbro sua chegada no desembarque. Seu surgir deixa tudo mais nobre, digno de ser vivido. Adianto aqui as lagrimas que virão, no soluço repercutido das vísceras.
9 é um sol que solta o rabo na terra. Toca o horizonte por um outro pedaço de círculo, maior, mostrando a coragem de existir só. É preciso viver bem só. Para tocar melhor o que não sou, o que é distinto de mim. Para reconhecer o que também não sou. O disco completo e o segmento de círculo maior encontram um caminho de viver. A vida segue. É o seu segmento.
Fazer parte de algo maior deixa ser maior.
9 também é círculo desenrolando do chão. É broto a enfrentar o futuro. É a terra que se lança no cosmos, amparada. Por enquanto. Acaso desafiando o ocaso. É vida pura, teimosa, criativa e disponível. Não deixa de ser unidade lançada do todo para contemplar o que há a vir.
Não cabe o pronome em “filho João”. Você não é meu. É de tudo. É tudo e não caba na posse. Desejo ajudar você a ser livre, do seu tamanho. Viver uma plena vida, cheia do bom, do mal, seus interstícios e descaminhos. Uma vida humana digna e espelho da beleza de tudo. Quero também estar na sua unidade, por onde estiver. Quero sermos círculo e também segmento. Quero ajudar seu pleno viver autônomo, seu colorir do mundo. Desejo que você seja. E isso é tudo.      
O sol 9 já tinha nascido um tanto quando me dei conta. Chegou miúdo, e agora já seca o sereno das flores da grama onde sento. Aparece sem preparo, mesmo após alguns nasceres esperados nos últimos 3 meses. Não há preparo para o inesperado. Há o preparo para o acolher o que vier, mesmo que seja a catástrofe. E principalmente se assim o for, pois não se pode sair do contínuo transformar. Somos impermanência.
Sua chegada é para sempre, como este nascer do sol 9 na cuesta de Botucatu, neste dia 24 de maio de 2018. Com ele vivo seu retorno próximo, em lágrimas e palavras fugazes, e para (um tanto bom desse) sempre.
Chega filho João. Desembarca. Há suficiente viver. Seja o que houve. Seja o que houver.
Seja o que há.
Há o ser.
Há.

12.4.18

Passagem

“Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...” (J. G. Rosa)  

Passagem.
Um mar vermelho.
Recomeçar a vida depois de um derrame é travessia e tanto. Há pouco mais de um ano e meio, em setembro de 2016, ele começa a enfrentar a sobrevida e o descontrole da motricidade decorrente de um AVC hemorrágico.
Desde então, e após 15 dias na ótima UTI de AVC da Faculdade de Medicina de Botucatu, reabilita-se à vida. Depois do vazamento de alguns mililitros de sangue que comprometem definitivamente parte do tecido neuronal no seu hemisfério cerebral direito.  O acidente vascular afasta dele a autonomia de andar, comer, levantar da cama e beber um copo de água, urinar ou tomar banho sozinho. Talvez o impedimento maior seja não poder brincar com os netos livremente.
Vive quão vasto pode ser o mar.
Vermelho. Definitivo.
Vive quão profundo é o estrago de alguns mililitros de sangue vazados.    
Um hematoma cerebral moderado é abissal para muitos. É instransponível para cerca de 80% das vítimas. É percurso truncado e relativamente comum. Aqui, além disso, há uma peculiar ironia do destino: Eduardo Modenese é um neurologista clínico e cirurgião.
Médico.
Por quase 50 anos de prática médica, desde sua formatura na segunda turma da FMB, dedica-se a cuidar das doenças neurológicas de outros. Tantos acidentes (inclusive os vasculares), atendimentos de emergências, incluídos os das madrugadas e fins de semana, tantas horas em mesas cirúrgicas e consultas, tanta busca por eficientes recursos para o tratamento, tantos pacientes que ficam ilhados em sua condição ou se vão de vez, além da intervenção humana. Outros, mais numerosos, viveram ou estão vivendo sua vida, reintegrados ao tecido social na medida do seu possível.
Aos 72 anos, enfrenta-se! Seu caso mais desafiador! Não há cirurgias ou medicamentos. Não há retornos... Nem retorno! Depara-se, sim, com o permanente viver da derrocada da autonomia. Há o continuo imiscuir-se na desobediência do corpo, frustrando-se na lentidão teimosa da neuroplasticidade.
Paciente.         
Em sua jornada, depara-se consigo em derrame. Derramado, em diagonal, na madrugada do sofá da sala, sem conseguir qualquer controle do lado esquerdo do corpo. Uma fenda se inunda entre vida e sobrevida.  E não pode curar-se milagrosamente, num átimo. É preciso viver a perda de si, vasculhar e desterrar os recursos para se encontrar. Ilhado no enigma, isola-se, vive a vertigem absurda de não poder se sanar, a não ser pelos passos curtos e sôfregos de uma longa passagem. A não ser pela conquista milimétrica perante a ruina da destreza.
Os movimentos finos da mão esquerda se afogam. O derrame asfixia a meticulosidade essencial das cirurgias em campos sutis do sistema nervoso. Agora, a debilidade ensina. O controle é grosseiro. A mão não obedece a vontade de firmar o garfo para o corte de uma carne que seja. Não pode, ainda hoje, empunhar à esquerda um copo e beber. O sutil se reverte em tosco. A intensidade da emergência se dissolve em paciência, em perseverança na reconquista de habilidades. 
A marcha fluida através da rotina, por tanto tempo frenética para a ação urgente, se esvai. Andar deixou de ser óbvio para ser uma jornada de tantos passos. Ao longo dos meses de fisioterapia e outras tantas atividades de reabilitação, engendra-se ao corpo uma nova dinâmica. Conquista, aos poucos, nova forma de caminhar pelo corredor da casa. Eduardo vem reaprendendo a equilibrar-se na existência. Teima. Reconfigura seu caminho, com a ajuda da esposa, família e bons profissionais, para achar seu novo rumo em cada passo até um novo si.
Atravessando.
Resiliente.
Lavrando confiança em novo lugar, em meio ao desterro de si.
Enquanto a motricidade se habilita de nova maneira, a cognição esteve intacta. Pelo bem e pelo mal... Memória, linguagem e pensamento estão ilesos desde o AVC. A consciência dessa travessia esteve resguardada. E a riqueza que daí emerge é diferencial. A todos que se dispõem a enfrentar algo assim, e especialmente a um neurologista. 
Aos poucos, revigora-se em crer que pode ajudar, e começa a retomar atendimentos no consultório. Esculpe na esperança, entremeada nos veios da paciência, uma barca para se descobrir. Navega perseverante (e não sem titubeios) pela inundação de alguns milímetros de sangue vazados e fatais a tecidos do cérebro.
Espera que possa ajudar alguns pacientes. Talvez possa contribuir não só com o conhecimento médico acumulado, mas também com a expertise sôfrega e penosa de ser um paciente, substantivo e adjetivo.
Médico e paciente estranham-se nessa passagem.
Encontram-se na catástrofe.
Derramam-se.
Confundem-se em outro homem.
Digno.
Entranham-se para fazer terceira margem.
Travessia.