27.12.05

Suspensões Dependuradas

poema mecanóptico-relativístico
A FORÇA DA POESIA É SUA RESULTANTE NULA
ESSE EQUILÍBRIO TOSCO
SUA LUCIDEZ FOSCA
E A SUFOCADA AGONIA DE FAZER-SE SEM SENTIDO,
ALMEJANDO O DESTERRO DO DESTINO INSOSSO,
COMO A VIDA DEPENDURADA NO RELATIVO
COM TODA SUAS NÃO-RAZÕES...

BIU
22-12-2005



Teso em suspensões ilusórias, do
caos temperado no limiar do medo
mãos dadas e distantes
de zero à cem por hora, dentro de que hora?

onde está pergunta meu coração duro
mas onde está o que responde minha alma...
essa fatalidade de viver para morrer?
esse sonho de não ter o que?
para que tudo isso
grampeador,
medidas,
grifos
traços
rolhas
percevejo
seusujeira
surrealismo infiel
nada é suficiente,
nada é estável
como poderia ser...
telefone
livros
maçanetas e chaves
ovos
leite
deus
barro
hummmmmmmmmmmmmm,

O telefone toca, o passáro toca
o corpo na grama toca
cêu azul, nuvem branca
limão, maçã, dedos
fins que não justificam os meios
tolice e seriedade, compromisso e atraso
câncer e hematomas
cubista mundo.

Imbecil mundo....

Zé Ortega

20.12.05

Consultório

Ampulheta
Especialidade 1: Oftalmologia
Exame 1: Olho no Olho
Diagnóstico 1: Cegueira por condensação vítrea
Terapia 1: Dar vida ao ver, Viver
Especialidade 2: Odontologia
Exame 2: Bate-papo
Diagnóstico 2:
Hipertração da ATM oclusante
Terapia 2: Mastigar e nutrir-se de Poesia
Biu
20/12/2005

19.12.05

Tempo de compras...

Crônica de uma vitrine

Num futuro não muito distante, seremos todos manequins: magérrimos, traços perfeitos, pele, cabelo e olhos inalteráveis.
Presos a uma porosidade áurea, perfeitos, imóveis; com o olhar ao infinito; indiferente ao mundo e, inclusive os ouvidos, entupidos de cera.
E então seremos eternos, eternamente exibidos, olhados, admirados e expostos numa vitrine das lojas de grife (no futuro, todas as lojas o serão), invejados por outros igualmente perfeitos, eternos e encantados, hipnotizadas pelo horizonte indefinido - e, por serem eternos, não invejam nada.
Para sempre sem dores, inertes ao mundo, ao tempo, às opiniões e às emoções, sem dores. Mortos, pois não há vida sem morte e ambas, sem dor. Mas eternos, finalmente eternos...

16.12.05

"O fim e o principio" - I

A Eduardo Coutinho

I

O sol sutura a pele
Do rosto içado ao chão de tudo,
Metido no escuro da face
Marcada do ferro solar arguto
Como cu(o)mprido sem justo ditado:
Mais do que a enxada,
É o mesmo sol hirto
Que castiga do mundo a terra
Devastada
Evacuada
Trucidada
Esturricada

BIU
05/12/2005

Pô, meu!

Poemel

“Eu sou convencido de que o homem inventa a si mesmo.” (Ferreira Gullar em palestra no Espaço Cultural CPFL)

“Não estou vazio,
Não estou sozinho,
Pois anda comigo,
Algo indescritível”
(Carlos D. Andrade em “Carrego Comigo” - Rosa do Povo)

Não li os filósofos,
Releio-os, filtrados.

Nos interstícios destras letras,
Embalsamados nos traços,
Ativados nos termos,
Roxos pelo repuxo
De cordas tensas,
Rotas e eriçadas,
Atadas a tanto custo
Nas fendas e arestas das palavras,
Mantidas em pé em folhas claras.

Cada qual pesa nada
Se retirada do estrume
Onde está (a)fundada,
Mas revela sem antes densidade
Caso tomada fruto
De toda uma humanidade,
Suspensa no ar caduco
Filtrado na árvore dependurada
No cálice da flor-palavra.

Vultos de respeito
Pela filogenia calada,
À sombra das sépalas,
Acometem e deixam suspeito
Cada termo de esconder a ossada
Do mistério às claras.

Ó indesejáveis letras desejadas,
Levadas a termo,
Revelam o sumidouro dos ofícios
E o oficio dos sumidouros,
O viver:
Beijar a flor enquanto primavera,
Extrair um mel
Doce e amargo
Opaco e translúcido
Viscoso, imiscível
Mas presente como a seiva do real

BIU
06 e 14/12/2005

7.12.05

Momentos

Silêncio (ao) Extra-Terrestre

Aqui os sons preenchem o silêncio
Mesmo quando o som é silêncio
E o silêncio é som
Da alma que investe em si
Diante do remanso mundo

Latidos encavalam piados,
E grunhidos, discursos
Percursos descrevem recursos
Do mundar-se ao fundo
Do farfalho dos ramos dos galhos
Da copa, ressonador da voz do vento

Aqui o ar é um elemento
Que impõe o não-esquecimento
Ao desmantelo do eu profundo
Perante reticências das eminências
Do silêncio chiado do mundo
Diante de si mesmo...


BIU
17/11/2005




Furo n’água


i.m. Haroldo de Campos

Que furo n’água, meu,
é: tudo é um furo n’água.
Suar a camisa embaixo
Do sol – a fim de quê?

A hora dos velhos chega,
Depois a nossa e nada
Muda no mundo.O sol,
Que sobe, desce, sobe

Outra vez, desce e assim
Por diante. Venta ao norte
E ao sul, ao sul e ao norte.
Os rios vão dar no mar:

Bom, e daí? O mar
Não enche, as águas voltam
Ao grid de largada
E a trabalheira é tanta

Que nem te digo. Olhar
Demais irrita os olhos
E ouvir dói nos ouvidos.
Mas dá tudo na mesma.

A gente só refaz
o que outros já fizeram
e tudo aqui debaixo
do sol é a mesma merda.

Quem chama algo de novo,
se olha direito, vê
que vem do tempo do onça.
Ninguém mais sabe como

Foi ontem nem ninguém
depois de amanhã vai
lembrar como é que as coisas
terão sido amanhã.

Nelson Ascher – “Parte Alguma”




As cidades e o céu 2


Em Bersabéia, transmite-se a seguinte crença: que suspensa no céu existe uma outra Bersabéia, onde gravitam as virtudes e os sentimentos mais elevados da cidade, e que, se a Bersabéia terrena tomar a celeste como modelo, elas se tornarão uma única cidade. A imagem que a tradição divulga é de uma cidade ouro maciço, com tarraxas de prata e porta de diamante, uma cidade jóia, repleta de entalhes e engastes, que supremas e laboriosas pesquisas, aplicadas a matéria de supremo valor, podem produzir. Fiéis a essa crença, os habitantes de Bersabéia cultuam tudo o que lhes evoca a cidade celeste: acumulam metais nobres e pedras raras, renunciam aos efêmeros, elaboram formas de composta compostura.
Também crêem esses habitantes, que existe uma outra Bersabéia no subterrâneo, receptáculo de tudo o que lhes ocorre de desprezível e indigno, e eles zelam constantemente para eliminar da Bersabéia emersa qualquer ligação ou semelhança com a gêmea do subsolo. No lugar dos tetos, imagina-se que a cidade ínfera possui latas de lixo invertidas, das quais transbordam cascas de queijo, embalagens gordurosas, água de louça suja, restos de espaguete, velhas vendas. Ou mesmo que a sua substância seja aquela escura, maleável e densa como pez que escorre pelos esgotos prolongando o percurso das vísceras humanas, de buraco negro em buraco negro, até esborrachar-se no mais profundo sedimento subterrâneo, e que justamente a partir dos preguiçosos enroscados lá em baixo elevem-se giro após giro, os edifícios de uma cidade fecal de extremidades tortuosas.
Nas crenças de Bersabéia, existe uma parte de verdadeiro e outra de falso. É verdade que duas projeções de si mesma acompanham a cidade, uma celeste e uma infernal; mas há um equívoco quanto aos seus conteúdos. O inferno incubado no mais profundo subsolo de Bersabéia é uma cidade desenhada pelos mais prestigiosos arquitetos, construída com os materiais mais caros do mercado, que funciona em todos os seus mecanismos e relojoaria e engrenagens, com ornamentos de passamanaria e franjas e falbalá pendurados em todos os tubos e vielas.
Preocupada em acumular os seus quilates de perfeição, Bersabéia crê que seja virtude aquilo que a esta altura é uma melancólica obsessão de preencher os receptáculos vazios de si mesma; não sabe que os seus únicos momentos de abandono generoso são aqueles em que se desprende, deixa cair, se expande. Todavia, no zênite de Bersabéia gravita um corpo celeste que refulge com todo o bem da cidade, reunido em torno do tesouro dos resíduos: um planeta que desfralda cascas de batata, guarda-chuvas quebrados, meias gastas, cintilantes cacos de terracota, botões perdidos, embalagens de chocolates, lajeado de bilhetes de bonde, fragmentos de unhas e de calos, cascas de ovo. Essa é a cidade celeste e em seu céu correm cometas de cauda longa, emitidos para girar no espaço como o único ato livre e feliz de que são capazes os habitantes de Bersabéia, cidade que só quando caga não é avara calculadora interesseira. I

Ítalo Calvino em “As Cidades Invisíveis” (1972)