25.1.06

Alvura de Rubem

Poesia
Por Rubem Alves (em uma introdução ao mês de outubro de uma agenda de 2001)

Poesia não é uma expressão do ser do poeta.
A poesia é uma expressão do não-ser do poeta.
O que escrevo não é o que tenho; é o que me falta.
Escrevo para me completar.
Minha escritura é o pedaço arrancado de mim.
Escrevo porque tenho sede e não sou água.
Sou pote.
A poesia é água.
O pote é um pedaço de não-ser cercado de argila por todos os lados, menos um.
O pote é útil porque ele é um vazio que se pode carregar.
Nesse vazio que não mata a sede de ninguém pode-se colher, na fonte, a água que mata a sede.
Poeta é pote.
Poesia é água.
Pote não se parece com água.
Poeta não se parece com poesia.
O pote contém a água.
No corpo do poeta estão as nascentes da poesia.
Não.
Não escrevo que sou.
Sou pedra.Escrevo pássaro.
Sou tristeza.Escrevo alegria.
A poesia é sempre o reverso das coisas.
Não se trata de mentira.
É que somos seres dilacerados.
O corpo é o lugar onde moram as coisas amadas que nos foram tomadas, presença de ausências, daí a saudade, que é quando o corpo não está onde está.
O poeta escreve para invocar essa coisa ausente.
Toda poesia é um ato de feitiçaria cujo objetivo é tornar presente e real aquilo que está ausente e não tem realidade.
“Like a bridge over troubled waters...”
O que escrevo é uma ponte de palavras que tento construir para atravessar o rio.